Derecho y Cambio Social

 
 

 

PRIVAÇÃO MOMENTÂNEA DOS SENTIDOS NO DIREITO BRASILEIRO

Genival Veloso de França*


 

 

Sumário: O autor descreve de forma breve a condição de privação momentânea dos sentidos, antes adotada no Código de 1890, e suas marcantes diferenças com a violenta emoção e a coação moral irresistível.

Uma das formas de violenta emoção é a privação momentânea dos sentidos. Trata-se de uma condição anômala em que o indivíduo perde sua capacidade de autodeterminação decorrente de uma emoção intensa e de caráter agudo, momentâneo e transitório. É de uma intensidade maior que a violenta emoção – um estado exaltado de ânimo -, da qual trata o artigo 65 do Código Penal brasileiro em vigor, e que se verifica de forma breve e intensa, mas sob o domínio parcial do indivíduo. Na privação momentânea dos sentidos que pode ter seu período mais prolongado e de grande intensidade reacional, fica o agente totalmente incapaz de entender o caráter criminoso do fato e de se determinar de acordo com esse entendimento.

Outra forma de violenta emoção e a coação moral irresistível. Nesta forma de ação o agente sofre o constrangimento de fazer o que está errado mas não se escusar de fazê-lo em face da coação sofrida. Sabe que não pode proceder de modo diverso e que a coação é irresistível e insuperável. Esta coação é sempre moral.

Procede o coagido como única forma de fugir de um perigo real e iminente e que de outra forma não teria como superar esta ameaça que pode ser a ele próprio ou a outrem ligado a si afetivamente. Há a hipótese putativa quando o coagido admite, por erro, estar sofrendo coação.

Em tese é considerado culpado não aquele que deu origem ao dano, mas também que tenha conduzido à ação normalmente. No entanto, se é praticada a ação sob coação irresistível não é passível de culpa, pois como tal não seria possível lhe exigir conduta diversa A coação irresistível está prevista no artigo 22 do Código Penal, com a seguinte redação: “Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem não manifestamente ilegal, de superior hierárquico só é punível o autor da coação ou da ordem”.

Preceitua o artigo 23 do mesmo diploma legal. “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; (...). Uma das formas de estado de necessidade é a coação moral irresistível. E o artigo 24: Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. Parágrafo 1º. Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo. Parágrafo 2º. Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços”.

            Na privação momentânea dos sentidos, mesmo que o indivíduo tenha a consciência da responsabilidade com a sociedade em que vive e esteja de acordo com suas regras, na privação momentânea dos sentidos não existe o domínio sobre as emoções nem a percepção das conseqüências do dano causado. Ela é substituída por uma idéia de traição ou de subtração de um direito legitimamente seu. Isto lhe acarreta uma intensa e abrupta deformação de seu entendimento capaz de privar seus sentidos e sua inteligência de agir racionalmente. O julgamento do agente é substituído por um motivo que naquele instante faz sua revolta parecer justa.

            Não se pode afirmar com precisão que tal atitude ocorra apenas com os indivíduos “perversos” e jamais com as pessoas de bem. Na maioria das vezes o que move o ato delituoso é a paixão, qualquer que seja sua origem e qualidade. Não se espere, por exemplo, que o motivo desta paixão seja sempre relevante para a sociedade. Para o autor destes delitos, pelo menos, o é.

Como exemplo pode-se apontar a honra ultrajada ou a traição dos amantes - o exaltado valor moral ou o naufrágio na luta desesperada pelo amor e paixão.

            O passado honesto e as qualidades morais são irrelevantes como elementos desencadeadores do crime. O mesmo se diga quanto ao seu nível social e intelectual e ao meio em que vivem. Ferri[1] afirmava que estes tipos de criminosos eram diferentes dos demais tanto pela baixa criminalidade como por sua nula reincidência. Evaristo de Moraes[2] afirmava que este tipo ocasional de crime não deveria merecer tratamento penal igual aos infratores comuns portadores de “instintos perversos”, tendo em conta as circunstâncias e os motivos de seus delitos.

            Segundo Roberto Lyra[3] “Não se pretende que só o motivo baste para classificar o criminoso e, conseqüentemente, orientar a individualização. O que se sustenta é a suprema importância do motivo na caracterização do crime e na revelação da índole do criminoso”.

O importante nesta análise é avaliar com segurança o caráter e o comportamento do infrator, pois somente aqueles que têm um passado e uma educação sem máculas podem ser avaliados dentro dos conceitos de criminosos passionais. Não se atribuir a qualquer crime de amor uma comovida aura de tragédia. Qualquer mácula pode descaracterizar a condição de passional e afastá-lo da possibilidade de absolvição.

Bonano[4], discípulo de Ferri, explicava assim as razões punitivas sobre tal fenômeno: “Se o critério da lei punitiva deve ser a justa e reta moderação da liberdade individual, e da temibilidade do réu, para o fim primordial da defesa da sociedade, não há razão alguma para punir homens que sempre foram honestos e bons, e que somente foram levados ao delito pela ofensa dos seus afetos mais caros, que perigo poderiam ainda constituir para sociedade? E acrescentava Ferri[5] ainda sobre o mesmo motivo: “Era, portanto, injusto que fosse julgado pelos mesmos parâmetros dos prisioneiros comuns”.

            O caráter passional deles, segundo Esmeraldino Bandeira, era um “deslize transitório da consciência honesta”. Sua absolvição pelos tribunais populares não poderia ser considerada como exagerada. Mo fundo mesmo, julgando caso a caso, pode-se dizer que eles são no momento da emoção violenta privados da consciência e do domínio sobre o mal cometido por incapacidade absoluta de entendimento. Eles são no momento da explosiva paixão e da emoção incontrolada inimputáveis em face da falta de controle da razão e da vontade. E mais: na sua totalidade estes criminosos passionais apresentam profundo remorso após seus delitos, remorso esse que os acompanha até o fim de suas vidas.

Ao agir movido por completa perturbação dos sentidos e da inteligência, sem a frieza do cálculo e a torpeza dos motivos fúteis, perde o agente o domínio sobre seu livre arbítrio e, portanto, o torna irresponsável penalmente.

Todavia é necessário que se prove, por fatos e circunstâncias, que o criminoso passional agiu em completa perturbação dos sentidos e da razão, que se analise com cuidado sua vida pregressa e que se ponderem as razões e circunstancias antes e depois do crime. Este tipo repentino de sentimento perturbado não admite a premeditação.

Qualquer repressão em casos a estes infratores é inútil, e, como tal, iníqua. Qualquer medida profilática ou educativa para prever ou evitar tais delitos não tem valor, porque não se sabe a que público devem ser dirigidas.

            Alguns acham que se tem abusado desta tese para absolver criminosos não passionais incluídos em crimes que nada têm de semelhantes com os precedidos por paixão violenta, como por exemplo, pela frieza e dissimulação dos “matadores de mulheres”.

O Código Penal de 1890, em seu artigo 27, parágrafo 4º. Considerava inimputável “os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime”

            A Comissão que elaborou o anteprojeto ao Código Penal de 1940 combateu a tese da passionalidade movida pela privação momentânea dos sentidos e da razão, tendo como bandeira a defesa da mulher vítima e frágil. E, de fato, esta tese foi excluída do atual Código, continuando a violenta emoção como atenuante para a diminuição da pena. Mas na doutrina se continua a discussão.

 A verdade é que nestes tipos de delito onde se invoca a privação momentânea dos sentidos o destaque não é a paixão como sentimento pois ela é um fato comum na vida das pessoas, mas a intensa emoção no seu instante grave, brusco e conflituoso ante um bem afetivo ultrajado.

É preciso pensar bem quando se for punir um homem que sempre foi honesto e bom e que agora cometeu um delito diante da ofensa dos seus sentimentos mais caros. Este é sem dúvida um episódio doloroso na vida desse padrão infrator.

O projeto de Alcântara Machado, que serviu de base para o Código Penal de 1940, enfatizava que a paixão não poderia ser apresentada nem como atenuante da pena nem como excludente da culpa, mas a comissão revisora formada de Nelson Hungria, Vieira Braga, Marcelo de Queiroz e Roberto Lyra mesmo combatendo a utilização da tese da passionalidade, aproximou-se muito mais do disposto no projeto Virgílio de Sá Pereira que era plenamente favorável à passionalidade. No texto definitivo do Código Penal de 1940, a paixão foi considerada uma atenuante da pena, ou seja, dependendo da análise do juiz, o criminoso poderia obter a redução da pena.

O fato não é o agente ter ou não sua honra e seus valores preservados, mas o de se encontrar numa situação aguda e grave de privação momentânea dos sentidos e da razão e considerado como inimputável, mesmo que a consciência pública assim não pense. Isto não lhe dá o direito para a prática do crime, mas nos cabe avaliar se sua capacidade de entendimento foi distorcida em face da privação da razão e da emoção. Nisto não há privilegio de gênero. Homens e mulheres devem gozar do mesmo tratamento.

 


 

NOTAS:

[1] in Princípio do direito criminal, São Paulo: Ed. Bookseller, 1999

[2] in Criminalidade Passional: O homicídio e o homicídio– suicídio por amor em face da Psychologia Criminal da Penalística. São Paulo: Saraiva, 1940

[3] in O suicídio Frustro e a responsabilidade dos criminosos Passionais. Rio de Janeiro: SCP, 1935:

[4] apud Moraes, E - Criminalidade Passional. O homicídio e o homicídio – suicídio por amor em face da Psychologia Criminal da Penalística. São Paulo: Saraiva, 1934.

[5] in O delito Passional na civilização contemporânea. São Paulo: Saraiva, 1934

 

 


 

*  Membro da Junta Diretiva da Sociedade Ibero-americana de Direito Médico.

Professor Titular de Medicina Legal da UFPB.

E-mail: gvfranca@uol.com.br

 


 

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