Revista Jurídica Cajamarca

 

 

En los Alpes suizos.

 

Procedimentos degradantes contra pacientes

Genival Veloso de França (*)


 

Resumo: O autor chama à atenção para o fato de alguns procedimentos coercitivos contra os pacientes, alguns desnecessários, de conotação humilhante e desumana. Considera apenas que algumas medidas de contenção sejam feitas quando em favor da integridade do próprio paciente ou excepcionalmente quando ele se tornar incapaz de entender seus gestos e impulsos.

Unitermos: Contenção de paciente. Medidas coercitivas. Coação ao paciente.

1. Introdução

A permanência de pacientes apenados ou reclusos em unidades hospitales ou ambulatoriais - qualquer que tenha sido sua infração ou qualquer que seja o tamanho da revolta de alguém - não autoriza quem quer que seja a usar de procedimentos degradantes, desumanos ou cruéis, ou ser conivente com tais práticas - ou não as denunciar quando delas ti­ver conhecimento.

Esta é a dogmática recomendação contida nos diversos dispositivos do Código de Ética Médica aos que exercem a medicina. O fato de se aceitar um paciente-detento acorrentado ao leito, por expressa manifestação do aparelho policial ou de outro órgão ligado à Segurança Pública, como forma de evitar a evasão do detento, não só macula dispositivos da norma ética, como compromete os postulados enaltecidos pela luta em favor dos direitos humanos.

Não tenho dúvida. Isto representa um gesto atentatório à condição humana, um vilipêndio aos seus direitos de cidadania e uma preconceituosa e discriminatória medida, transformando alguém, sentenciado ou não, num cidadão de terceira ou quarta classe.

Infelizmente, em certas oportunidades, os aparelhos do poder organizado em nosso país que disciplinam as relações sociais e que administram a repressão (polícia), que julgam e aplicam as sanções (justiça) e que executam a punição (prisão) não deixam, de certo modo, de exercer ou tolerar a violência. E esta é sem dúvida a forma mais grave de arbítrio porque ela flui de um órgão de proteção e contra a qual dificilmente se tem remédio.

A verdade é que este aparelho de poder autorizado legalmente usa da  violência não só contra os movimentos coletivos de reivindicação e protesto. Mas também contra os trabalhadores sem terra e sem emprego, contra os presos por crime de opinião e por pequenos delitos como garantia da “ordem social” que tem suas razões ditadas pelas classes dominantes, as quais se sentem ameaçadas. Este modo de atuar do aparelho policial não deixa de ser uma fonte permanente de violência aos delinqüentes, mas ainda uma forma desrespeitosa e irreverente com as pessoas  que estão presentes às seus violentos procedimentos.

A violência do aparelho de tutela da polícia judiciária é certamente a mais impiedosa e humilhante porque o presidiário, principalmente o de crimes comuns, representa para o poder e para uma fração da sociedade, uma escória. Não passa pelos critérios dessas pessoas que a pena seja uma medida de recuperação e de ressocialização, mas tão-só um instrumento de vindita e de execração. O próprio sentido de intimidação e de humilhação no rigor punitivo não deixa de constituir uma modalidade de terrorismo oficial.

Tudo que existe de sórdido no sistema de tutela policial: a prepotência, a falta de disciplina e a brutalidade gratuita de alguns agentes do poder e o seu desdém pelas entidades que promovem a defesa e a proteção dos direitos humanos, é com certeza a manifestação mais abjeta da intolerância, da irreverência e do arbítrio. Esta “justiça paralela”, amparada pela mesma inspiração de violência instituída, só serve para desmoralizar a Justiça e aviltar a dignidade humana.

2. Fundamentos

Qualquer que seja a intenção, qualquer que seja o direito protegido, trata-se de atentado à dignidade da pessoa e um desrespeito aos direitos do Homem e do cidadão.

Não é consolo dizer que, de outras vezes, pacientes comatosos ou agitados foram amarrado às macas ou aos leitos por meio de ata­duras de crepom ou gaze. Isto é outra coisa. Tem o sentido de protegê-lo. É feito em seu favor, sem nenhum resquício de humilhação. Feito para ele não cair no chão.

Posso até acreditar que tal processo não se constitua uma forma de tortura, no sentido de fazê-lo sofrer os padecimentos da dor. Mas é uma maneira indisfarçável de procedimento desumano e degradante. Leia-se a Declaração de Tóquio, adotando linhas mestras para os médicos, com relação ao tratamento degradante e desumano a detentos e prisioneiros (Anexo 2, artigo 1°):

"Qualquer ato de tortura, ou outro tratamento, ou castigo cruel, desumano e degradante, é uma ofensa à dignidade humana e será considerado como uma negação aos propósitos do C entro das Nações Unidas e como violação dos direitos e liberdades fundamentais da Declaração Universal dos Direitos Humanos”.

Vale a pena reler a velha Declaração de Tóquio, pelo seu como­vente humanitarismo e como documento de reconhecida e justa reverência.

Não se admite também a alegação de que o tratamento médico foi feito dentro dos padrões que a nova medicina permite. Isto é pouco. O remédio do corpo foi feito, ainda due de forma degradante, acredito eu. Mas a alma, mesmo a alma mais desgraçada de um homem não pode ser atormentada por quem exerce tão nobre mister e por quem alimenta uma consciência que teima e não se rende.

A consciência dos que sofreram e reagiram, e ainda hoje maldizem os tempos da ditadura - pois era assim que se tratavam homens, mulheres e jovens quase crianças-, não pode concordar com isto. Muitos foram tratados assim, acorrentados ao leito de dor, após as mais torpes e degradantes sessões de tortura que encheram de espanto os subterrâneos habitados pela desgraça e pelo terror.

Há muitos anos, num humilde burgo da Mancha, quando Felipe lI, o Demônio do Sul acabava de morrer, quatorze vezes sacramentado, abraçado à imagem do Deus do Amor, havia na escuridão do cárcere um homem, um prisioneiro arruinado pelas febres e pelo desespero, combalido pela fome que lhe roia as gengivas escorbúticas. Seu nome era Miguel de Cervantes Saavedra, o iluminado autor do Dom Quixote de !a Mancha, livro que nos faz rir na juventude e que, mais tarde, numa segunda leitura, mais detida, nos congela o riso nos lábios e sufoca um grito na boca.

Pois bem, lá para diante, no capítulo dos conselhos a Sancho Pança, antes que este vá governar a ilha que ganhou, está escrito:

"A quem  hão de castigar com  obra.s, não  tratar mal com gestos, pois bem presta ao desditoso a pena do suplício, sem o acrescentamento das injúrias”.

E mais:

"Ao culpado que  cair debaixo da tua jurisdição, considera-o como um mísero, sujeito às condições da nossa depravada natureza, e, em tudo quanto estiver de tua parte, sem agravares a Justiça, mostra-te piedoso e clemente, porque ainda que são iguais todos os atributos de Deus, mais resplandece e triunfa aos nossos olhos o da misericórdia que o da justiça ".

E muito grave que o corpo clínico de uma unidade hospitalar, pelo seu diretor técnico ou pelo seu chefe de serviço, aceite candidamente as ordens do agente policial, quando lhe cabia exigir dos órgãos de segurança os meios adequados para que o detento venha a cumprir sua pena de forma justa e merecida.

Ele, o apenado, além de estar sob a guarda e a proteção da Justiça, pode exigir o respeito à sua integridade física e moral: e a sociedade, por sua vez, tem o direito de vê-lo cumprir a justa medida punitiva.

Não me causa nenhuma estranheza essa deliberação do aparelho repressor do Estado. É lamentável dizer, mas é necessário, que uma certa fração da polícia tornou-se viciada no arbítrio e no exagero, imbuída de uma mentalidade repressiva, preconceituosa e reacionária. Suas vítimas, agora, são os pacientes apenados - os aidéticos detentos, os tuberculosos detentos -, já marcados e feridos tantas vezes pelo infortúnio e deserdados da sorte.

Duvido muito que eles colocassem algemas nos delinqüentes de gravata ou nos marginais que se cercam do poder.

Mas isto é da natureza humana: mostrar sua força à custa dos mais fracos.

O diretor técnico ou o chefe de serviço conivente com tal estilo de tratamento não infringiu apenas o artigo 4° do Código de Ética Médica, mas também os artigos 8°, 47 e 49.

Senão, vejamos:

O ato médico deve ser exercido como quem pratica um ato político. Sempre na tentativa de recolocar o indivíduo nos seus anseios e nos seus sonhares.

            Não pode e não deve ser exercido de forma capaz de aviltar o ser humano.

            Ao médico, cabe trabalhar também pelo prestígio e bom conceito da profissão, ainda que certas mentalidades frias e pragmáticas ten­tem deslocar o homem para um plano ético e político, na qualidade de simples objeto.

A medicina deve constituir um projeto voltado para o bem do Homem e da Humanidade, sem discriminação ou preconceito de qualquer espécie (art. 4°).

A prática da medicina deve ser consagrada pelo livre exercício, como garantia constitucional e corolário dos princípios liberais.

Esta profissão não pode conviver com as restrições de suas práticas, nem com injunções que possam prejudicar a eficácia e a correção de seu trabalho, por inspiração de quem quer seja, autoridade ou não (artigo 8°).

Mesmo que uma ordem administrativa ou uma determinação da autoridade policial venha a violentar sua consciência, o médico não pode aquiescer, porque isso lhe assegura o Código de Ética. Se um ato médico estiver cercado de constrangimento e humilhações contra o ser humano, o profissional tem o direito de subverter essa ordem, de exercer a desobediência civil (art. 47).

O médico não pode participar de qualquer forma de procedimentos desumanos ou cruéis, nem ser conveniente com tais práticas, ou não as denunciar, quando delas tiver conhecimento. Ele deve manter respeito incondicional pela pessoa humana.

Sua primeira obrigação é ajudar a quem se encontre sob seus cuidados, qualquer que seja o nível dessas pessoas, qualquer que seja o crime cometido por elas, quaisquer que sejam os credos e as razões de quem assim professa.

E isto em todas as situações - inclusive nos conflitos armados ou nas comoções civis, quando tudo parece perdido, dadas as condições mais excepcionais e precárias.

Na hora mesma em que o direito da força se instala, negando o próprio Direito, e quando tudo é paradoxal e inconcebível - ainda assim o respeito pela dignidade humana é de tal magnitude que a intuição humana tenta protegê-la contra a insânia coletiva. criando regras que impeçam a prática de crueldades inúteis (art. 49).

3. Conclusão

­         Pelo visto, a permanência indiscriminada de pacientes apenados ou reclusos em unidades hospitales ou ambulatoriais - qualquer que tenha sido sua infração ou qualquer que seja o tamanho da revolta de alguém - não justifica ninguém usar de procedimentos degradantes, desumanos ou cruéis, ou ser conivente com tais práticas - ou não as denunciar quando delas ti­ver conhecimento, entre estas a de prender pacientes às macas ou aos leitos por meio de algemas ou outros meios iguais. Isto não tem o sentido de protegê-lo nem efeito em seu favor, mas um resquício de humilhação.


 


(**) Professor Visitante da Universidade Estadual de Montes Claros (MG)

Profesor Titular de Medicina Legal y Deontología Médica de la

Universidad Federal de la Paraíba,

Miembro de la Junta Directiva de Sociedad Iberoamericana de Derecho Medico

 Profesor de Medicina legal de la   Escuela Superior de la Magistratura de la Paraíba,

Vicepresidente de la Asociación Brasileña de Medicina Legal,

    Miembro Titular de la Academia Internacional de Medicina Legal y Medicina Social, Miembro Titular de la  Academia Brasileña de Ciencias Médico-Sociales,

Miembro Titular de la Academia Paraibana de Medicina,

Profesor invitado del Curso Superior de Medicina Legal de la Universidad de Coimbra de Portugal (Brasil).

http://www.direitomedico.com.br/genival

http://www.openline.com.br/~gvfranca

E mail: gvfranca@openline.com.br 


 

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