Derecho y Cambio Social

 
 

 

DIREITO, NEUROCIÊNCIA  E  O  PROBLEMA DA RACIONALIDADE JURÍDICA

Atahualpa Fernandez (*)


   

 

A localização dos correlatos cerebrais relacionados com o juízo moral, usando técnicas de neuroimagem (e também por meio dos estudos sobre lesão cerebral) , parece ser, sem dúvida,  uma das grandes notícias  da  história  das  ciências sociais normativas. De fato, na medida que a neurociência permite um entendimento cada vez mais sofisticado do cérebro, as possíveis implicações  morais , jurídicas e sociais destes avanços no conhecimento de nosso sofisticado programa ontogenético cognitivo começam a poder ser seriamente  considerados sob uma ótica muito mais empírica e respeitosa com os métodos científicos. O objetivo seria, em princípio,  o intento de aclarar a localização de funções cognitivas elevadas entendidas como apomorfias do Homo sapiens, ao estilo da capacidade para  a elaboração de juízos morais.

 Mas não resta dúvida alguma de que, a partir das evidências obtidas, cabe ir muito mais longe. Esses avanços, contudo,  para além de sua extraordinária relevância científica, também carregam consigo importantes conotações filosóficas, jurídicas e morais, particularmente no que se refere à  compreensão  dos processos  cognitivos superiores relacionados com o juízo ético-jurídico, entendidos estes como estados funcionais de processos cerebrais. Parte-se da convicção de que, para comprender essa parte esencial do universo ético-jurídico, é preciso dirigir-se para dentro do cérebro, para os substratos cerebrais responsáveis por nossos juizos morais e cuja gênese e funcionamento deverão  então ser reintegrados na história evolutiva própria de nossa espécie[1].

E em que pese o fato de que as pesquisas de neurociência cognitiva acerca do juízo moral e do juízo normativo no direito e na  justiça ainda se encontram em uma fase muito precoce, sua utilidade parece ser indubitável. Com uma condição: que em um terreno tão delicado como o da investigação neurocientífica haverá de tomá-las em conta com muita prudência . Porque a ciência , que seguramente servirá para garantir mais conhecimento sobre a natureza humana, não poderá garantir,  por si mesma, valores morais como podem ser um maior respeito à vida , à igualdade e à liberdade humanas.

Essa talvez seja a razão pela qual abundam os interrogantes e as dúvidas filosóficas e morais no terreno em que se pode estabelecer uma relaçao entre neurociência e direito:  estamos  no caso do juízo moral ou outros fenômenos perceptivos similares, ante processos cognitivos mais bem unitários e discretos, ou se trata somente de fenômenos que emergem de muitos mecanismos psíquicos articulados no tempo e espaço? Têm estes supostos processos ou séries de processos algum aspecto de carater universal, no sentido de que contam com algum componente nuclear comum capaz de determinar em cada indivíduo sua particular valoração do que é ou deixa de ser justo? Será possível algum dia descrever esse processo ou processos (ou os componentes chave) em termos mais objetivos? Cabe buscar sua origem em algum padrão idiossincrásico de atividade neural que contenha ao menos alguma sequência  espaço-temporal identificável compartida por todos os indivíduos? A diferença do que parece ocorrer na base neural das facultades artísticas (Changeux,1994; Vigouroux,1992), existem algumas áreas neuronais cuja intervenção específica seja em certo modo crítica e universal no marco da atividade amplamente distribuída que muito provavelmente subjaz – como em todos os processos cognitivos superiores (Vigouroux,1992) – ao fenômeno da experiência moral? Em que medida contribuem a herança e a história de aprendizagem de cada indivíduo  no pôr em marcha ou na ativação desse suposto padrão funcional? Podem ser de utilidade as modernas técnicas de neuroimagem não tanto para a localização estrita da sede cerebral de tal traço de atividade, senão, mais bem, para a identificação da implicação diferencial de certos circuitos distribuídos?

Particularmente com relação ao fenômeno jurídico, tanto no que se refere ao seu aspecto ontológico como metodológico de interpretação e aplicação do direito , o problema da localização dos correlatos cerebrais que ditam o sentido da justiça continua a suscitar algumas dúvidas relevantes: qual a relação existente entre os resultados da investigação neurocientífica sobre a cognição moral e jurídica e as perspectivas teóricas do direito?  Em que pontos se podem enlaçar de modo presumidamente tão decisivo para que a neurociência cognitiva ponha em questão os atuais modelos e  resultados da compreensão e da realização jurídica? De que forma um modelo neurocientífico do juízo normativo no direito e na justiça oferece razões poderosas que poderão vir a dar conta da falsidade subjacente às concepções comuns da psicologia (e da racionalidade) humana? Em que medida é possível saber onde termina a cognição e começa a emoção no processo de realização do direito? Que alcance pode chegar a ter essa perspectiva neurocientífica para o atual edifício teórico e metodológico da ciência jurídica? Ou, já que estamos, de que maneira cambiará nossa concepção acerca do homem enquanto causa e fim do direito e, conseqüentemente, para a tarefa do jurista-intérprete de dar “vida hermenêutica” ao direito positivo em sua relação na prática?

Desde logo, parece possível  conjeturar que a investigação neurocientífica sobre a cognição moral e jurídica possa vir a afetar nosso entendimento acerca da natureza  do pensamento e da conduta humana, com conseqüências profundas no domínio próprio (ontológico e metodológico) do fenômeno jurídico. E porque não há uma instituição humana mais fundamental que a norma jurídica e, no  campo do progresso científico, algo mais instigante que o estudo do cérebro, a união destes dois elementos (norma/cérebro) acaba por representar uma combinação naturalmente fascinante e estimulante, uma vez que a norma jurídica  e o  comportamento que procura regular são ambos produtos de processos mentais. Depois, e ainda neste contexto, o processo de interpretação e aplicação jurídica (convertido no ponto cardinal da evolução jurídica) aparece como o mecanismo apto e o único meio possível e com capacidade necessária e suficiente para por em evidência a natural combinação cérebro/norma.

É que nem princípios nem regras regulam por si mesmos sua aplicação no âmbito do comportamento humano. Eles representam apenas os pilares passivos do sistema jurídico. Se se quer obter um modelo completo, deve-se agregar aos pilares passivos um ativo, quer dizer, um procedimento de interpretação , de justificação e de aplicação das regras e princípios jurídicos. Portanto, os níveis das regras, dos princípios e do comportamento humano têm  que ser completados por um quarto : o de um processo de concreta realização do direito  e a correspondente (e iniludível)  dimensão subjetivo-individual (neuronal) do jurista- intérprete.  Dito de outro modo, seja com Gadamer, Esser, Zaccaria ou Dworkin, porque direito é interpretação (e diante da inseparabilidade do conhecer e o interpretar e do interpretar e o aplicar), não há direito que não seja, dentro de um parâmetro de controle da correção da interpretação, direito aplicado para este novo despertar da consciência hermenêutica dos juristas[2].

 Neste particular, a idéia passa a ser a de discutir as questões relativas ao impacto que a neurociência cognitiva  pode chegar a ter para o atual edifício teórico e metodológico da ciência jurídica, uma vez que, se o fator último de individualização da resposta ou conclusão do raciocínio  jurídico não  procede do sistema jurídico (ainda que deva resultar compatível com ele), parece óbvio que deve proceder das convicções pessoais do operador jurídico, ou seja, a subjetividade presente em todo ato de compreensão, interpretação e  aplicação jurídica deverá  abordar-se por meio da análise dos processos cerebrais do operador do direito. Parafraseando a  advertência de Philip Tobias (1997) relativa a linguagem, se julga com o cérebro ( e se de algo não há dúvida é que temos um cérebro herdado por via do processo evolutivo).

De fato, temos todas as razões para crer que a tomada de decisão surge da atividade eletroquímica  de redes-neurais no cérebro. A experiência de decidir não é uma ficção , senão uma conseqüência causada pela atividade  fisiológica de um cérebro  (produto de sistemas cognitivos e emocionais no cérebro) moldado geneticamente ao longo da história evolutiva de nossa  espécie e desenhado para pensar de certa maneira. Trata-se de um processo neuronal, com a óbvia função de solucionar a “melhor solução” segundo suas conseqüências previsíveis, a par de devidamente fundamentada. Depois, não parece razoável supor que a tarefa interpretativa e os modelos metodológicos  sejam concebidos como extracraneais, enquanto a cognição e a emoção não o são. São produtos de nossa maquinária cerebral, tanto como são produtos de nosso entorno cultural.

Pois bem, um dos “fetiches”  mais comuns da ciência jurídica atual , herdado da concepção tradicional do método jurídico que busca resguardar os valores de ordem,  verdade e segurança jurídica , é o de assegurar que os juizes devem limitar-se a aplicar  aos casos individuais as normas gerais ditadas pelo legislador, segundo um processo de dedução formal lógico-dedutivo e subsuntivo. Trata-se de uma operação meramente  descritiva, cognoscitiva de uma norma previamente estabelecida e “reprodutiva” da vontade do legislador (a quem cabe a exclusiva responsabilidade das intenções axiológico-normativas plasmadas nas leis). Tal operação, partindo do suposto da neutralidade emocional, da racionalidade e da objetividade do intérprete,  reduz o juiz a um puro técnico de aplicação mecânica das leis, como o responsável pela busca (ou o simples conhecimento) de sua vontade , como a descrição, que pode ser verdadeira ou falsa, de seu autêntico significado prévio e preexistente à  própria atividade interpretativa.

De fato, toda a construção hermenêutica e a própria unidade da realização do direito elaboradas pelas teorias contemporâneas pressupõem, na atualidade, o modo de explicação dominante da teoria da eleição racional[3] , construindo uma imagem racional do que parece ser, em si mesmo, irracional. Seu conceito fundamental é o de que, antes de tudo, os  juízes são essencialmente racionais e objetivos em seus juizos de valor acerca da justiça da decisão: examinam tão bem como podem todos os fatores pertinentes ao caso e ponderam, sempre de forma neutra e não emocional, o resultado provável de seguir de cada uma das eleições potenciais . A opção preferida (“justa”) é aquela que melhor se adequa aos critérios de racionalidade e objetividade por meio da qual foi gerada.

O processo de análise indicado contêm, em essência, uma operação incompatível com os conhecimentos que a neurociência nos aporta. A de construir um modelo de extrema racionalidade (da decisão dos juizes) de algo que se configura essencialmente como  uma atividade com acentuados componentes irracionais.

O inadequado da imagem se põe de manifesto ao analisar como funciona o cérebro  quando formulamos juizos morais acerca do justo ou injusto. A causa dos processos cerebrais associados, é preciso aceitar a iniludível presença de elementos não-lógicos e, em geral, a intrusao do valorativo no raciocínio jurídico. A partir daí, não resulta aceitável nem legítimo o seguir considerando a tarefa hermenêutica como uma operação ou conjunto de operações regidas exclusivamente pela silogística dedutiva ou cognoscitiva. De fato, a mente humana parece estar carregada de traços e defeitos de desenho que empanam o nosso legado biológico no que se refere à plena objetividade e racionalidade cognitiva .

Os teóricos do direito positivistas mais influentes do século que acaba de concluir (sobretudo Kelsen, mas também Hart, com os necessários matizes) não nos ofereceram por sua parte uma teoria da aplicação do direito, senão que se limitaram a considerar que onde não há aplicação mecânica ou subsunção deve falar-se de discricionariedade em sentido forte, quer dizer, de atividade criadora do direito, entendendo por tal um ato de vontade discricional no qual a razão comparece em uma condição meramente instrumental. Para Kelsen, por exemplo, todo ato de interpretação é de natureza volitiva e não cognoscitiva. Disto se depreende que o ato de “aplicação” do direito constitui em realidade uma autêntica decisão, um ato constitutivo e não meramente declarativo, analogamente ao que sucede com os atos do legislador[4].

Depois, não só a maioria das decisões judiciais são tomadas com bastante rapidez, em cenários complexos e com informação parcial e  incompleta – inclusive, em condições de incerteza -  , como os julgadores , no processo de realização do direito, não deixam de ser homens imbuídos de toda a preocupação ética, de certos valores, preferências e intuições morais , o que faz com que  não  pareça legítimo nem  razoável interpor, na aplicação do direito, uma barreira insuperável entre  a  desejada objetividade e a subjetividade emocional do intérprete . O processo de realização do direito por parte do juiz implica , em última analise , uma tarefa que pode considerar-se propriamente construtiva e emocional, pessoal e criativa  em certo sentido, embora não como absolutamente livre ou desprovida de vínculos para o julgador.

Com efeito, que não se possa falar  de uma solução única, de uma única resposta correta, significa precisamente que quem aplica o direito pode eleger entre várias soluções possíveis , todas elas corretas, quer dizer, todas elas deriváveis das normas que integram o sistema jurídico e segundo o procedimento nele estabelecido. E se isso é assim, se várias soluções ou respostas corretas são possíveis para um mesmo problema jurídico, a eleição final, necessariamente única, se apresenta então como não derivada exclusivamente do sistema, circunstância que, de pronto, levanta ao menos três questoes fundamentais :  de ordem epistemológica,  de ordem axiológico-política e de ordem  subjetivo-individual do jurista-intérprete.

E é essa constatação a que faz com que não somente a noção de racionalidade habitual  em ciência jurídica está sendo objeto de revisões drásticas, senão que a idéia mesma de que  a ciência jurídica está fundada na objetividade , neutralidade e  racionalidade do operador do direito vem sendo assaltada e posta em dúvida nos últimos lustros desde as mais variadas direções . Desde logo, a partir de algumas tendências da filosofia e da filosofia do direito mesmo, mas também, e acaso mais incisiva e contundente, por parte dos  cientistas cognitivos, dos filósofos da mente e dos avanços provenientes da própria neurociência cognitiva. E com o resultado de que, embora quando alguma noção de racionalidade no processo de realização do direito parece iniludível (tratar de prescindir da idéia de agentes intencionais é tarefa condenada de antemão ao fracasso),  o processo de derivação de valores não é de natureza fundamentalmente neutra, objetiva e racional[5].

Se é certo que a eleição moral não pode existir sem a razão ( preferências individuais e razão instrumental), não menos certo é a “intuição” de que é a gama caracteristicamente humana de emoções que produz os propósitos, metas, objetivos, vontades , necessidades, desejos, medos, empatias , aversões e a capacidade de sentir a dor e o sofrimento de outro[6]. Formulamos juizos de valor sobre o justo e injusto não somente por sermos capazes de razão ( como expressam a teoria dos jogos e a teoria da interpretação jurídica ) mas, ademais,  por estarmos dotados de certas intuições morais inatas e  de determinados estímulos emocionais que caracterizam a sensibilidade humana e que  permitem que nos  conectemos potencialmente com todos os outros seres humanos.

Em definitivo ,  devido ao fato de que a pressão evolutiva não incrementou ( de forma “optima”)  a racionalidade humana, qualquer construção de uma teoria jurídica de realização do direito deve implicar um redimensionamento da compreensão psico-biológica do próprio acesso da razão. Em particular,  deveria partir da rejeição de qualquer concepção acerca da racionalidade, objetividade e neutralidade causada pelo desconhecimento do funcionamento de nosso cérebro, particularmente os relacionados  com os correlatos cerebrais que intervêm  no processo cognitivo de formular juizos morais para decidir entre o justo ou injusto.

 Daí que o juízo ético-jurídico baseado não somente em raciocínios senão também em emoções e sentimentos morais produzidos pelo cérebro, não pode ser considerado como totalmente independente da constituição e do funcionamente desse órgão que, em uma primeira aproximação, parece não dispor de uma sede única e diferenciada relacionada com a cognição moral. O melhor modelo neurocientífico do juizo normativo disponível hoje estabelece que o operador do direito ético-cerebral conta, em seus sistemas avaliativo-afetivos neuronais, com uma permanente presença de exigências, obrigações e estratégias , com um “dever-ser” que incorpora internamente motivos racionais e emocionais, e que se integra constitutivamente em todas as atividades dos niveis prático, teórico e normativo de todo processo de realização do direito.

Neste particular, o modelo neurocientífico do juízo normativo no direito e na justiça parece sugerir que o raciocínio jurídico implica um amplo recrutamento e emprego de diferentes sistemas de habilidades mentais (relacionados tanto com o pensamento racional como emocional) e fontes de informação diversas (Goodenough & Prehn, 2005). De que é a atividade coordenada e integrada das redes neurais a que torna possível a conduta moral humana, isto é, de que o juízo moral integra as regiões frontais do cérebro com outros centros, em um processo que implica a emoção e a intuição como componentes fundamentais. É mais, que cada uma destas funções cerebrais intervêm em uma grande diversidade de operações cognitivas, umas relacionadas com a inteligência social e outras não (Greene et alii,2001 , 2002 e 2005[7]; Moll et alii, 2002 e 2003 e 2005).

Parece fora de dúvidas o fato de que as investigações em neurociência cognitiva da moral , e muito particularmente do juízo normativo no direito e na justiça, podem vir a fornecer uma enorme e rica contribuição para a compreensão em detalhe do funcionamento interno do cérebro humano  no  ato de  julgar – de formular juizos morais acerca do justo e do injusto[8] . A neurociência pode subministrar as evidências necessárias sobre a natureza  das zonas cerebrais ativadas e dos estímulos cerebrais implicados no processo de decidir , sobre  o grau de envolvimento pessoal dos julgadores e os condicionantes culturais em cada caso concreto,  assim como sobre os limites da racionalidade e o grau de influência das emoções e dos sentimentos humanos na formulação e concepção acerca da “melhor decisão”[9] .

 Sem olvidarmos, claro está, de outros aspectos distintivos da natureza do comportamento humano à hora de decidir sobre o sentido da justiça concreta e  a existência de  universais morais determinados pela natureza biológica de nossa arquitetura cognitiva (neuronal). Afinal é o cerebro que nos permite dispor de um sentido moral, o que nos proporciona as habilidades necessárias para viver em sociedade e solucionar determinados conflitos sociais, e o que serve de base para as discussões e reflexoes filosóficas mais sofisticadas sobre direitos, deveres, justiça e moralidade.

           Decerto que também resulta precipitado pensar que as primeiras investigações neurocientíficas acerca do juízo moral e normativo já nos abre a porta  a uma humanidade melhor. Me temo que isso seria simplificar as coisas ao extremo. Assim como o criacionismo ingênuo pode condenar aos humanos a uma minoria de idade permanente, assim também um modelo neurocientífico incompleto pode levar-nos a conceber ilusões impróprias. Porque não é definitivamente certo que um maior e melhor  conhecimento dos condicionantes neuronais dos humanos nos proporcione automaticamente uma vida humana mais digna. Oxalá fossem as coisas tão simples!

Pensar que a relação cérebro/moral/direito é tudo pode levar-nos a olvidar que a medida do direito, a própria idéia e essência do direito, é o humano, cuja natureza resulta não somente de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios senão também de experiências, valores, aprendizagens, e influências procedentes de nossa igualmente embaraçada vida sócio-cultural.

O mistério dos humanos consiste precisamente em advertir que cada um é um mistério para si mesmo. A neurociência nos ajudará a entender uma série de elementos que configuram o mistério, mas não o eliminará de todo.

Ainda assim, dando por sentado que o mistério permanecerá sempre, a ciência talvez possa levar-nos a entender melhor que a busca de um adequado critério metodológico para a compreensão e a realização do direito pode considerar-se, antes de tudo,  como a arqueologia dessas  estruturas e correlatos cerebrais relacionados com o processamento das informações ético-jurídicas.

Poderá, inclusive, ajudar-nos a compreender que a atividade hermenêutica se formula precisamente a partir de uma posição antropológica e põe em jogo uma fenomenologia do atuar humano; que somente situando-se desde o ponto de vista do ser humano  e de sua natureza será possível ao julgador  representar o sentido e a função do direito como unidade de um contexto vital, ético e cultural. Esse contexto estabelece que os seres humanos  vivem das representações e significados desenhados para a cooperação, o diálogo e a argumentação e processados em suas estruturas cerebrais. Que, em seu "existir com" e situado em um determinado horizonte histórico-existencial, os membros da humanidade reclamam continuamente aos outros, cuja alteridade interioriza, que justifiquem suas eleições aportando as razões que as subjacem e as motivam.

Assim que, embora ainda não saibamos grande coisa sobre o funcionamento de nosso cérebro, converter esse mar de especulações em certeza é decerto a tarefa que se espera da ciência , no preciso sentido de que uma compreensão mais profunda das causas últimas (radicadas em nossa natureza) do comportamento moral e jurídico humano poderá vir a ser de grande utilidade  para averiguar quais são os limites e as condições de possibilidade da ética e do direito no contexto das sociedades contemporâneas.

Referências

Adolphs, R., Tranel, D., & Damasio, A. (1998). The human amygdala in social judgement. Nature, 393, 470-474.

Aiello, L. C., & Wheeler, P. (1995). The expensive tissue hypothesis: The brain and the digestive system in human and primate evolution. Current Anthropology, 36, 199-221.

Bartels, A., & Zeki, S. (1999). The theory of multistage integration in the visual brain. Proceedings of the Royal Society B, 265, 2327-2332.

Bechara, A., Damasio, H., Damasio, A. R., & Lee, G. P. (1999). Different contributions of the human amygdala and ventromedial prefrontal cortex to decision-making. J Neuroscience, 19, 5473-5481.

Behm-Blancke, G. (1983). Altpaläolithische Gravuren von Bilzingsleben, Kr. Artern. Ethnographisch-Archäologische Zeitschrift, 24, 304-320.

Casebeer, W.D. (2003). “Moral Cognition and Its Neural Constituents”, Nature Reviews Neuroscience, 4: 840-847.

__ & Churchand, P.S.(2003) .“The neural mechanisms of moral cognition: a multiple-aspect approach to moral judgment and decision-making”. Biol. Philosophy, 18: 169-194.

Cela-Conde, C. J., Marty, G., Maestu, F., Ortiz, T., Munar, E., Fernandez, A., Roca, M., Rossello, J., & Quesney, F. (2004). Activation of the prefrontal cortex in the human visual aesthetic perception. Proceedings of the National Academy of Science, 0401427101.

Changeux, J.P. (1994). Raison et plaisir, Paris: Odile Jacob.

__ (1996). Fundamentos naturais da ética. Lisboa. Instituto Piaget.

Changeux, J.P. y Ricouer,P. (1998). La nature et la règle.Ce quí nous fait penser. París. Éditions Odile Jacob.

Cherniak, C. (1986). Minimal Rationality, Cambridge, Mass., MIT Press.

Churchland, P. S. (1993).  “Eliminative Materialism and the Propositional Attitudes”, in  Alvin I. Goldman (comp.), Readings in Philosophy and Cognitive Science, Cambridge, Mass., MIT Press.

Damasio, A. R. (1994). Descartes' Error. Emotion, Reason, and the Human Brain. New York, NY: G.P. Putnam's Sons.

Damasio, H., Grabowski, T., Frank, R., Galaburda, A. M., & Damasio, A. R. (1994). The Return of the Phineas Gage: Clues About the Brain from the Skull of a Famous Patient. Science, 264, 1102-1105.

Deacon, T. W. (1996). Prefrontal cortex and symbol learning: Why a brain capable of language evolved only once. In B. M. Velichkovsky & D. M. Rumbaugh (Eds.), Communicating Meaning: The Evolution and Development of Language (pp. 103-138). Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum.

Dennett, D. C. (1987). The Intentional Stance. Cambridge, MA: Bradford Books.

___(1996). Contenido y conciencia, Barcelona, Gedisa.

___(1997). Kinds of Mind: Towards na Understanding of Consciousness, London: Weidenfeld & Nicholson.

___(1998).  La actitud intencional, Barcelona, Gedisa.

___ (2000). Tipos de mentes. Hacia una comprensión de la conciencia, Madrid, Debate.

Dworkin, R. (1986).L´impero del diritto. Milán: Il Saggiatore.

Fernandez, Atahualpa (2005).”O orgão da moral”. Revista multidisciplinar das ciências do cérebro. v. 2, n. 4, julho-agosto/2005.

___(2006). Argumentação jurídica e hermenêutica.Da natureza humana ao discurso jurídico.Campinas: Ed. Impactus.

__(2005). Diritto e natura umana: la funzione sociale-adattiva del comportamento normativo, in: i-lex, 3 , pp. 307-336 (del formato pdf),  in i-lex Scienze Giuridiche,Scienze Cognitive e Intelligenza Artificiale, Revista quadrimestrale on-line: www.i-lex.it.

__, "Law and Neuroscience" (May / 2005).  Working Paper. Journal of Law, University of Florida, http://journal.law.ufl.edu/~techlaw/editors/fernandez.doc.

Fischer, R. (1990). Why the Mind is not in the Head but in the Society's Connectionist Network. Diogenes, 151, 1-24.

Fodor, J. A. (1983). The Modularity of Mind. Cambridge, MA: M.I.T Press.

Gazzaniga, M. S. (2005). The Ethical Brain. New York: Dana Press.

__(1993). El cerebro social. Madrid: alianza.

__( 1998). The Mind´s Past. California.California University Press.

__(1989). “Organization of the Human Brain”, Science, 947: 245.

Gazzaniga, M. S. et alii (2002). The Biology of the Mind, 2nd. Edition, NY:W.W. Norton & Company, Inc.

Gazzaniga, M.S. & Heatherton,T.F.(2003). Psychological Science: mind, brain and behavior, NY:W.W. Norton & Company, Inc.

Gigerenzer, G. & Tood, P.M. (1999) Simple heuristics that make us smart.New York: Oxford University Press.

Goodenough,O. & Prehn, K. (2004). A neuroscientific approach to normative judgment in law and justice, In Goodenough, O. & Zeki, S. (2004).Law and the brain. The Royal Society: Phil. Trans. R. Soc. Lond. B, 359: 1709-1726.

Greene, J. D., Sommerville, R. B., Nystrom, L. E., Darley, J. M., & Cohen, J. D. (2001). An fMRI Investigation of Emotional Engagement in Moral Judgment. Science, 293, 2105-2108.

Greene, J. et alii (2002). How (and there) does moral judgement work?.Trends in Cognitive Sciences, 6 (12):517-523.

Greene, J. et alii (2005). Saving lives versus keeping promises: an fMRI investigation of consequentialist and deontological moral judgment. Program nº 12.7.Abstract Viewer/Itinerary Planner.Washington, DC: Society for Neuroscience.

Habermas, J. (1996). Fatti e norme. Contributi a una teoria discorsiva del diritto e della democracia, Milán, Gueriri e Associati.

Heekeren, H. R., Marrett, S., Bandettini, P. A., & Ungerleider, L. G. (2004). A general mechanism for perceptual decision-making in the human brain. Nature, 431(7010), 859-862.

Jones, O. (1994). “Law and evolutionary biology: obstacles and opportunities”. Journal of Contemporary Health Law and Policy. Vol. 10: 265-283.

__(2001). “Time-Shifted Rationality and the Law of Law´s Leverage: Behavioral Economics Meets Behavioral Biology”, Nw. U. L. Rev., 1141-95.

Jones, O. &  Goldsmith, T. H. (2004). “Law and Behavioral Biology”: Columbia Law Review, vol. 105: 405-502.

Kahneman, D.  et  alii (1982). Judgment under uncertainty: Heuristics and biases, Cambridge, Cambridge University  Press.

Kenny, A.(2000). La metafísica de la mente,  Barcelona: Paidós.

Lanzetta, J. T. et alii (1989). « Expectations of Cooperation and Competition an Their Effects on Observers´ Vicarious Emotional Responses”, Journal of Personality and Social Psychology, 56: 543-554.

Moll, J., Oliveira-Souza, R., Bramati, I., & Grafman, J. (2002). Functional Networks in Emotional Moral and Nonmoral Social Judgements. NeuroImage, 16, 696-703.

Mool, J. et alii (2003). Morals and the human brain: a working model, NeuroReport,14(3): 299-305.

Mool, J. et alii (2002). The neural correlates of moral sensitivity: A fMRI investigation of  basic and moral emotions. The Journal of Neuroscience,22(7): 2730-2736.

Moll et al., (2005).The neural basics of human moral cognition. Nature Neuroscience Reviews, 6: 799-809.

Rizzolatti, G. Et alii (2001). “Neurophysiological Mechanisms Underlying the Understanding and Imitation of Action”, Nature Reviews Neuroscience, 2:661-670.

Rof Carballo, J. (1952). Cerebro interno y mundo emocional. Barcelona: Labor.

Sanfey, A. G., Rilling, J. K., Aronson, J. A., Nystrom, L. E., & Cohen, J. D. (2003). The Neural Basis of Economic Decision-Making in the Ultimatum Game. Science, 300, 1755-1758.

Searle, J. (1980). Minds, Brains and Programs. The Behavioral and Brain Sciences, 3, 417-424.

__ (2000). Razones para actuar. Una teoría del libre albedrío, Barcelona, Nobel.

__ (1992). Intencionalidad. Un ensayo en la filosofía de la mente, Madrid, Tecnos.

Simner , J.L.(2002). “Newborn´s Response to the Cry of Another Infant”, Developmental Psychology, 5: 136-157.

Simon, Herbert A..(1983). “Discovery, invention, and development: human creative thinking”, Proceedings of the National Academy of  Sciences,  80:  4.569-4.571.

__ (1959). “Theories of Decision-Making in Economics and Behavioral Science”, American Economic Review, XLIX, 253-283.

__ (1982). Models of Bounded Rationality, 2 vols., Cambridge, Mass., MIT Press.

__ (1977). Models of Discovery , Dordrecht,  Reidel.

__ (1990). “A mechanism for social selection of successful altruism”, Science, 250:1665-8.

Tobias, P.V. (1997). Orígenes evolutivos de la lengua hablada. In C.J.C. Conde, R.G. Lombardo, & J.M. Contreras (Eds.), Senderos de la evolución humana (pp. 35-52).México:Ludus Vitalis, número especial 1.

Vigouroux, J. (1992). La fabrique du beau. Paris : Odile Jacob.

Zeki, S. (1993). A vision of the brain. London: Blackwell Scientific Publications.

___ (1995). Inner Vision, Oxford: Oxford University Press.

Zeki, S., & Marini, L. (1998). Three cortical stages of colour processing in the human brain. Brain, 121, 1669-1885.

   

 

 


 

 

NOTAS:

 

[1] Na advertência de Changeux (1996), cérebro é evidentemente a “base” da linguagem e da moral. E o ser humano é o único meio através do qual os valores chegam ao mundo. De fato, se se borrasse o conjunto de cérebros humanos da face da terra, o direito desapareceria ao mesmo tempo. As normas e teorias  jurídicas seguiriam plasmadas em livros guardados em estantes de bibliotecas abandonadas. Todas estas obras do gênio humano não teriam já a oportunidade de viver cada vez  que uma mirada humana recai sobre elas. O direito não existe mais que no cérebro  do homem ao que vai dirigido e que somente ele é capaz de produzir e compreender. Somente os cidadãos individuais têm direito ou sentido de justiça, e as têm precisamente em seu cérebro, na forma de representações plasmadas em suas conexões neuronais. O resto é mitologia. Com efeito, toda nossa conduta, nossa cultura e nossa vida social, tudo quanto fazemos, pensamos e sentimos, depende de nosso cérebro. O cérebro é a sede de nossas idéias e emoções, de nossos temores e esperanças, do prazer e do sofrimento, da linguagem (do direito) e da personalidade. Se em algum órgão se manifesta a natureza humana em todo o seu esplendor, é sem dúvida em nosso volumoso cérebro. Lástima que não o conheçamos melhor. Nesse mesmo sentido, Gazzaniga (2005) defende a idéia de que poderia existir  um conjunto universal de respostas biológicas aos dilemas morais, uma sorte de ética integrada no cérebro.

[2] Trata-se da perspectiva que participa da orientação geral (tanto no âmbito do Common Law como no sistema do Civil Law), dirigida a ligar o conceito de positividade jurídica com o âmbito da realização concreta do direito no momento da decisão do juiz, quer dizer, de um ponto de partida hoje prevalecente na teoria contemporânea do direito: a tese de que o procedimento judicial forma o ponto central prospectivo desde o qual se deve analisar o sistema do direito (Habermas, 1996 e Dworkin,  1986).

[3] Devido ao fato de que a pressão evolutiva não incrementou (de forma “ótima”) a racionalidade humana, qualquer  construção de uma teoria jurídica de realização do direito deve (ou pelo menos deveria, coerente e prudentemente) implicar um redimensionamento da compreensão psico-biológica do próprio acesso da razão e sobretudo  da própria idéia de racionalidade. Dizendo de maneira menos generosa, deveria partir da rejeição de qualquer concepção acerca da racionalidade, objetividade e neutralidade causada pelo desconhecimento do funcionamento de nosso cérebro e de nosso passado evolutivo – muito especialmente no que se refere às evidências experimentais relacionadas com os correlatos cerebrais que intervêm no processo cognitivo de formular juízos morais para decidir entre o justo ou injusto. Neste particular, importa considerar o fato de que parte-se da premissa de que em questão de racionalidade humana há sempre dois componentes que se entrelaçam: as limitações  da mente humana e a estrutura dos ambientes nos quais a mente funciona. Isto é, de que ao modelo de juízo humano e aos processos de tomada de decisões deveria ser agregado o que em realidade sabemos sobre o funcionamento e as capacidades da mente humana  mais bem que sobre presunções ou capacidades fictícias.Trata-se, em síntese, de um modelo muito distinto do modelo tradicional de racionalidade ilimitada e de otimização em ciência cognitiva (transportada para as ciências sociais normativas) que vê a mente humana como dotada de poderes sobrenaturais ou de poderes demoníacos de razão: de um conhecimento ilimitado da realidade e do ambiente, assim como de toda a infinita eternidade para tomar decisões. O que em realidade a denominada “bounded rationality” toma em consideração é o entendimento do processo de tomada de decisões em um mundo verdadeiro, onde a mente humana, funcionando como uma caixa de ferramentas adaptável (“adaptive toolbox”), toma decisões com os recursos realistas mentais de que dispõe e condicionada pelas iniludíveis limitações de tempo, de informação e de conhecimento. Tal como um mecânico utilizará ferramentas específicas para cada tarefa de manutenção do motor de um carro, mais bem que o simples golpe de todo o motor com um martelo grande, os domínios diferentes de pensamento requerem instrumentos e módulos diferentes especializados. Esta é a idéia básica da caixa de ferramentas adaptável: a coleção de mecanismos especializados cognitivos que a evolução incorporou na mente humana para os domínios específicos de inferência e o raciocínio. Em resumo, trata-se da idéia de que a mente está dotada com um sem-fim de dispositivos altamente especializados, isto é, está composta por múltiplos módulos mentais. Cada um destes módulos foram desenhados pela seleção natural para fazer frente a um determinado problema adaptativo  que tiveram  de afrontar no passado os caçadores-recoletores. Tais dispositivos estão firmemente ensartados na mente desde o nascimento e são universais a todos os seres humanos. Por outro lado, estes módulos apresentam uma singular e fundamental característica:  são  “ricos em conteúdo”. Quer dizer, não só proporcionam conjuntos de regras para resolver problemas, senão que  subministram também o grosso da informação necessária para tal tarefa. Este conhecimento reflete a estrutura  do mundo real, ou ao menos o mundo do Pleistoceno em que evolucionou a mente. Esta informação sobre a estrutura do mundo real, junto com uma multitude de normas  para solucionar problemas – cada uma  contida em seu próprio módulo mental – já está presente na mente do recém-nascido. E enquanto alguns módulos são chamados a atuar de forma imediata – p.e., para o contato com os olhos da mãe –, outros requerem algo mais de tempo antes de se colocar em funcionamento, como por exemplo os módulos  para a aquisição da linguagem. Este processo de tomada de decisão foi analisado explicitamente em primeiro lugar por Herbert A. Simon (1975 e 1959), um economista da Universidade Carnegie Mellon, e denominado satisfacing: uma maneira de tomar decisões sobre um leque de alternativas que respeitam as limitações de tempo, de informação e de conhecimento humano disponíveis. Desde o trabalho de Simon sobre inteligência artificial e a solução de problemas na década de 1950, a psicologia cognitiva assumiu gradualmente as pesquisas sobre a criatividade, que é vista, algumas vezes, como um simples modo de resolver problemas um pouco mais difíceis que a média. Assim que a noção de  “racionalidade”  habitual em ciências sociais ( e particularmente na teoria econômica) não somente está sendo objeto de revisões drásticas, senão que a idéia de que a ciência é o crisol da racionalidade (epistêmica) vem sendo assaltada nos últimos lustros desde as mais variadas direções: desde logo, a partir de algumas tendências da filosofia da ciência mesma, mas também, e acaso mais incisiva e contundente, por parte dos cientistas cognitivos e dos filósofos da mente.Por exemplo, no âmbito do direito (Jones e Goldsmith, 2004) e na ciência econômica positiva, vem sendo objeto , nos últimos vinte anos, de um sem fim de escrutínios  críticos: psicólogos da decisão como Kahneman e Tversky (1982)têm mostrado sua inadequação empírica; lógicos e cientistas cognitivos como Cherniak(1986) tem demonstrado sua indocilidade computacional e ainda sua  inconsistência formal; filósofos tão distintos como Paul Churchland (1993)e Alex Rosenberg(1992) têm apontado  ao seu escasso  valor informativo e preditivo; filósofos como Dennett (1996,1998 e 2000), Kenny (2000) e Searle (1992e 2000) a criticam de uma perspectiva propriamente filosófica da mente; e um bom número de economistas de primeira linha, desde Herbert Simon(1982) até Ken Binmore (1982) tratam de emendá-la mais ou menos construtivamente. Segundo a psicologia cognitiva evolucionista de Herbert Simon, Amos Tversky, Daniel Kahneman, Gerd Gigerenzer e Paul Slovic  o pensamento e a tomada de decisões nos humanos são adaptações biológicas, e não mecanismos de pura racionalidade. Esses sistemas mentais funcionam com quantidades limitadas de informação, têm de chegar às decisões em um período de tempo finito e, em última análise, servem a objetivos evolucionários como status e segurança. Sobre a “bounded rationality”, a “ecological rationality” e a mente como  “adaptive toolbox”, ver o trabalho desenvolvido pelo grupo de investigação ABC do Instituto Max Planck de Berlim, dirigido pelo prof. Gerd Gigerenzer : Gigerenzer, G. & Tood, P.M. (1999) Simple heuristics that make us smart.New York: Oxford University Press. Particularmente para uma análise acerca da “racionalidade diferida” (time-shifted rationality- TSR), relativa aos tratos cognitivos evolutivos que eram adaptativos em um ambiente ancestral mas que conduziu, em entornos temporalmente sucessivos ( mas com a persistência de características historicamente adptativas), a comportamentos irracionais ou não adaptativos no ambiente das sociedades contemporâneas, cfr., por todos, Jones e Goldsmith, 2004 e Jones, 2001.

[4] Sobre esta questão, as mais acreditadas dentre as teorias da argumentação jurídica se movem em um espaço intermédio que transita desde o  “ultra-racionalismo” de um Dworkin – cujo juiz Hércules faz gala de uma invejável confiança na capacidade de sua razão – até o  “irracionalismo” de um Ross, se merece tachar-se de irracionalista sua realista chamada de atenção sobre o fato de que as decisões jurídicas, ao igual que sucederia com qualquer outro gênero de decisão, dependem da  vontade do sujeito das mesmas – neste caso, o juiz – ao menos tanto como de sua razão. E porque as razões e as soluções jurídicas “costumam sair a passear” – como alguma vez  se disse – “por casal”, quando não por grupo ou manada, parece razoável supor que, sobre a delicada questão da tarefa de produzir, interpretar e aplicar o direito, a melhor alternativa seja a de adotar uma perspectiva mais realista sobre a psicologia (e a racionalidade) humana e comprometida com os estudos que se efetuam em outros campos do conhecimento humano distintos ao direito, como a ciência cognitiva, a genética do comportamento, a neurociência cognitiva , a primatologia e a psicologia evolucionista, entre outras destinadas a aportar uma explicação  científica da mente e da natureza humana. (Atahualpa Fernandez, 2006).

[5] Na aguda observação de Camilo J. Cela-Conde (1999): “Sabemos que não é possível separar, como pretendia Descartes – e como afirmaram, em seu momento, os funcionalistas cognitivos –, emoção e racionalidade, espírito e cérebro. Isto se aplica ao conjunto do conhecimento, ou seja, às matemáticas, à mecânica quântica, à ética e à literatura”. António Damásio (1994) descreve o trabalho efetuado com muitos de seus pacientes com lesões cerebrais, freqüentemente no lóbulo frontal, que perderam sua capacidade de resposta emocional normal e, por conseguinte, converteram-se em seres incapazes de manifestar emoções.Em lugar de se converter em seres inteiramente racionais, dispostos a tomar decisões sem as fastidiosas distrações provocadas pela emoção, são pessoas praticamente paralisadas pela indecisão; a obrigação de tomar determinações, por pequenas e insignificantes que sejam,  transforma-se em um dilema que só podem resolver quando se empenham a fundo e passam um largo tempo refletindo sobre a seleção das opções possíveis de serem adotadas. Não precisa dizer que uma existência normal se torna praticamente impossível para esses enfermos. Não seria assim para o resto dos humanos que não  nos damos conta da (ou procuramos dissimular a) envergadura emocional contida em um ato de tomada de decisões, porque para nós não existe a implicação de umas conseqüências passadas e, quando se trata de preferências, somos capazes de simplesmente reagir de acordo com nossa aptidão ilimitada de sentir emoções segundo a interpretação e denominação que façamos de nossas respostas fisiológicas. Em resumo, quem não tem emoções é um “idiota racional”, ou seja, a caricatura desenhada por Sen para identificar  a pessoa egoísta de curta visão: um idiota incapaz de avaliar o efeito de  suas ações sobre outras pessoas. Registre-se que, neste particular, Damásio, LeDoux , economistas como Robert Frank, biólogos como Robert Trivers e psicólogos como Jerome Frank chegaram a conclusões parecidas, a partir de provas diferentes. É, de fato, uma “coincidência” notável.

[6] Uma larga e rica história de investigação psicológica esboçou a chamada hipótese do altruismo empático, que intenta explicar a conduta pró-social que adotamos quando vemos a outro ser em apuros. Automática e inconscientemente simulamos estes apuros em nossa mente, que a sua vez nos fazem sentir mal, não de uma maneira abstrata senão literalmente mal. Nos contagiamos das sensações negativas da outra pessoa, e para aliviar esse estado próprio nos vemos motivados a atuar. Vários estudos corroboram a idéia de que a manipulação dos sentimentos com relação a um indivíduo incrementa a atitude cooperativa. Por exemplo, a percepção de gestos de angústia ou dor no outro propicia que a conduta seja mais altruísta. Já se realizaram incontáveis experimentos para corroborar essa idéia geral. John Lanzetta e colaboradores (1989) já demonstraram em várias ocasiões que a gente tende a responder ao sentido do tato, do gosto, da dor, do medo, da alegria e do entusiasmo dos demais com análogos padrões fisiológicos de ativação.Literalmente sentem os estados emocionais dos demais como se fossem próprios. Esta tendência a reacionar ante o sinal de dor ou sofrimento dos demais parece inata: se há demonstrado em crianças recém nascidas, que choram em resposta ao sinal de dor de outras crianças nos primeiros dias de vida (Simner, 2002). Alguns experimentos neurofisiológicos e de imagem cerebral sugerem que as neuronas espelho existem nos seres humanos e que são as responsáveis da “compreensão das ações”, quer dizer, que têm a função de contribuir à compreensão e à imitação das ações alheias.(Rizzolatti et alii, 2001).

 

[7] Imagine uma situação onde a sua interferência pode significar o sacrifício de uma vida para salvar outras cinco. Note-se que, na filosofia, não há consenso acerca da solução para este tipo de dilema. Para a neurociência, contudo, o  raciocínio consequencialista de John Stuart Mill ( segundo o qual o que importa são as ações que produzem a maior felicidade à maior quantidade de pessoas, ou seja, o “bem maior”) parece estar associado a um padrão de ativação cognitiva ( pré-frontal) , enquanto buscar o comportamento moral de Kant (segundo o qual o importante é “agir moralmente”, a intenção de quem produz a ação, independente do seu resultado relativamente ao “bem maior”: é mais importante não vulnerar os direitos de outra pessoa que obter um resultado ideal) envolve um padrão “social-emocional” de ativação cerebral que envolve, predominantemente, circuitos emocionais. O que acontece quando há um conflito entre esses dois tipos de raciocínios? Pois bem, para responder esta pergunta, Greene e colaboradores (2005) criaram cenários onde decisões pelo bem maior envolvessem a quebra de uma promessa, colocando as predições de Mill e Kant em pratos opostos da balança. Como esperado, e com um resultado que não dista muito dos experimentos anteriores, a manutenção de uma promessa em detrimento do “bem maior” encontra-se associada a ativação de circuitos sociais-emocionais (Atahualpa Fernandez, 2005). Essa ativação também acontece enquanto se decide por quebrar a promessa em prol de um julgamento utilitário – mas é sobrepujada pela ativação , instantes mais tarde, do córtex pré-frontal dorso-lateral. Confrontado com dilemas, portanto, a primeira reação do cérebro parece ser emocional, em prol de uma moral interna que, no entanto, pode ser silenciada se o córtex pré-frontal optar pelo bem maior, contra os impulsos de outras regiões do mesmo cérebro. Um exemplo ilustrará melhor ao que estamos nos referindo: suponhamos que um indivíduo vá em seu carro novo e vê a um homem estendido na calçada. Sofreu um acidente e está ensangrentado. Poderia levá-lo ao hospital e salvar-lhe a vida; sem embargo, mancharia de sangue seu carro novo. É moralmente aceitável deixá-lo aí? Cambiemos de cenário. Um indivíduo recebe um pedido por correio donde se diz que, se envia 100 reais, salvará a vida de 10 crianças famintas.É aceitável enviar o dinheiro? Ao analisar este tipo de dilemas, Greene e colaboradores (2005) descobriram que, ainda que as opções são superficialmente as mesmas – não faças nada e preserva teu interesse próprio ou salva vidas com pouco custo pessoal -, a diferença estriba em que o primeiro cenário é pessoal, enquanto que o segundo é impessoal. Em síntese, os estudos comprovam que as decisões ante dilemas pessoais supoem mais atividade cerebral nas zonas associadas com a emoção e a cognição moral. E a teoria que justifica esta circunstância é a de que, desde uma perspectiva evolutiva, as estruturas neuronais que associam os instintos com a emoção se selecionaram ao largo do tempo porque resulta benéfico ajudar à gente ou cumprir uma promessa de modo imediato; o instinto visceral, ou moral, é o resultado de processos selecionados ao largo do processo evolutivo: dispomos de processos cognitivos que nos permitem tomar decisões morais rápidas que aumentarão nossa probabilidade de sobrevivência ( se estamos programados para salvar a um indivíduo ou cumprir as regras de reciprocidade do intercâmbio social, todos sobreviveremos melhor). O certo é  que, de acordo com os experimentos provenientes da neurociência cognitiva, parece razoável supor que não estamos frente a dois juízos reciprocamente excludentes, senão diante de dois juízos diferentes que ativam áreas distintas do cérebro por obra das circunstâncias e do envolvimento pessoal do agente que atua. Por exemplo, Casebeer (2003), tendo em vista as numerosas filosofias morais que existem, tomou como ponto de partida de suas investigações acerca das zonas cerebrais  que se ativam durante o raciocínio ou juízo moral, as três filosofias ocidentais mais importantes: o utilitarismo de Stuart Mill , a deontologia de Kant e a teoria da virtude de Aristóteles (que trata de cultivar a virtude e evitar os vícios). Concluiu sua análise com a seguinte observação: “Assim que poderíamos dizer [...] que estes três enfoques situam-se em diversas zonas do cérebro: frontal (Kant); préfrontal, límbica e sensorial (Mill); a ação corretamente coordenada de todo o cérebro (Aristóteles)”. Seja como for, no atual panorama  científico tem aparecido vários estudos donde se afirma que  existe , no cérebro, uma versão do raciocínio ou juízo moral. Já se descobriu que determinadas regiões do cérebro, normalmente ativas durante os processos emocionais, se ativam diante de alguns tipos de juízo moral, mas não diante de outros. Os encarnizados debates seculares sobre a natureza das decisões morais e sua similitude ou diferença se resolvem agora de maneira rápida e clara com a moderna imagem cerebral. E os novos resultados indicam que, quando alguém está disposto a atuar segundo uma determinada crença moral, é porque a parte emocional de seu cérebro se ativou ao pensar na questão moral. Assim mesmo, quando se apresenta um problema moralmente equivalente sobre o qual a pessoa decide não atuar, é porque a parte emocional do cérebro não se ativa. Trata-se de uma assombrosa novidade para o conhecimento humano, porque ajuda a entender que a resposta automática do cérebro pode predizer nossa resposta moral. Resumindo: os novos resultados das imagens cerebrais parecem indicar que o cérebro responde aos grandes dilemas morais subjacentes, isto é, de que parece haver mecanismos subconscientes inatos comuns que se ativam em todos os membros de nossa espécie como resposta aos desafios morais. É como se todos os dados sociais do momento, os interesses de sobrevivência pessoal que todos possuímos, a experiência cultural que já vivemos e o temperamento básico de nossa espécie alimentassem os mecanismos subconscientes e inatos que todos possuímos e daí surgira uma resposta, um impulso para atuar ou deixar de atuar (Gazzaniga,2005).Nesse sentido, o fato de que os juízos morais são maioritariamente intuitivos e inatos talvez seja (ou constitua) a chispa moral, o aglutinante que impede que nossa espécie se destrua a largo prazo.

[8] De fato, seguimos sem entender como se produzem os fatos mentais mais triviais. Não sabemos o que ocorre no cérebro quando tomamos uma decisão, ou quando aprendemos um número de telefone. Nem sequer acabamos de entender para que serve dormir ou sonhar. A informação topográfica de que dispomos não proporciona conhecimento algum sobre os mecanismos subjacentes nem permite averiguar nem compreender o que ocorre no cérebro, senão somente  donde ocorre.O cérebro controi o mundo da percepção e a experiência. Alguns fótons emitidos pelo Sol e refletidos pelas coisas externas impactam na superfície da retina, donde são detectados pelos fotoreceptores. Os sinais luminosos são digitalizados e transmitidos pelo nervo óptico ao cérebro. Este os recebe e, a partir deles, constroi o mundo cheio de formas e cores que vemos. Esta visão é realista, mas representa a realidade de uma maneira autoconstruída. E ainda não conseguimos entender como o cérebro constrói o mundo percebido .

[9] O desenho do cérebro que está aparecendo graças aos estudos da engenharia cerebral aponta já algumas pistas dignas de menção. Em primeiro lugar, a confirmação daquelas hipóteses lançadas por Crick e Koch (1990) acerca da consciência como uma atividade sincronizada de neurônios que se encontram situados em lugares distintos da corteza cerebral, coisa que acaba por colocar em cheque algumas das ideáis mais firmes do funcionalismo computacional e da concepção estrita do suposto da modularidade dos processos cognitivos (Fodor, 1983), como por exemplo: o de um processador central e um progresso bottom-up da percepção até chegar aos processos superiores. No que chamamos “conhecimento” intervêm sequências de ativação complexas cujas dimensões espaciais e, sobretudo, temporais não puderam ser postas de manifesto até o desenvolvimento de técnicas tão precisas como a da magnetoencefalográfica, capaz de detectar a ativação neuronal em lapsos de centésimos de segundo. Por outro lado, a caracterização neurológica da moral sim que parece compatível com uma psicologia evolucionista que entenda que uns mesmos processos cognitivos intervenham em diferentes tarefas ou para resolver diferentes problemas (Shapiro & Epstein, 1998).Estamos longe ainda de contar com um mapa preciso das ativações espaço-temporais relacionadas com os processos cognitivos, mas parece que vamos trilhando  um bom caminho para começar a fazê-lo e a compreendê-lo. Já sabemos, por exemplo, que na tarefa de realização de juízos morais (assim como de juízos normativos no direito e na justiça) é essencial a conexão fronto-límbica (Damasio, 1994; Adolphs et al, 1998; Greene et alii, 2001 , 2002 e 2005; Moll et alii, 2002 , 2003 e 2005; Goodenough & Prehn, 2005). Sabemos que a percepção estética implica a ativação da corteza préfrontal esquerda (Cela-Conde et al, 2004). Sabemos como se realiza o processamento das cores a partir dos centros visuais primários da corteza ociptal (Zeki & Marini, 1998; Bartels & Zeki, 1999), assim como a ativação neuronal relacionada com a identificação de objetos percebidos mediante a visão (Heekeren, Marrett, Bandettini & Ungerleider, 2004). Em termos gerais vai aparecendo um panorama em que a corteza préfrontal joga um papel de primeira ordem respeito do que são os processos cognitivos superiores, coisa que, por outra parte, havia sido já sugerida, ainda que fosse a título de hipóteses especulativa, pelos paleoantropólogos (Deacon, 1996; 1997).

 

 


 

 (*) Pós-doutor em Teoria Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política/Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/ Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of Califórnia, Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público / UFPa.; Professor Titular / Unama-PA ;Professor Colaborador (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana do Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).

E-mail: atahualpaf@yahoo.es

 


 

Índice

HOME