Derecho & Sociedad

 
 

 

Da desigualdade legítima

Lenise Antunes Dias (*)

 


     

 

RESUMO

 

O presente artigo tem como objeto de estudo o princípio jurídico da igualdade, tanto no seu aspecto doutrinário, como também legal. O referido princípio aparece na Carta Constitucional brasileira como um dos valores supremos de nossa sociedade, como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil e como um dos direitos fundamentais do cidadão. Precisamente no caput do artigo 5º da citada Carta, assim como na maioria das declarações de direitos, o Constituinte originário declarou que “Todos são iguais perante a lei”, ou seja, todos devem merecer tratamento igualitário, sem restrições e nem discriminações. Todavia, as constituições modernas, inclusive a brasileira, não preceituam uma igualdade absoluta e nem rigorosa. Ao contrário, permite-se a desigualdade, desde que esta seja legítima, no sentido de que a norma jurídica pode conter fatores de diferenciação que justificam, de forma racional e legal, sua existência.

 

Palavras – chave: igualdade, norma jurídica, desigualdade legítima, Constituição Federal.

  

INTRODUÇÃO

             A proposta inicial e central deste estudo é o princípio jurídico da igualdade e, ligado a isso, verificar quando as normas jurídicas agridem o referido princípio, quais desigualdades existentes entre as pessoas, coisas e situações são permitidas pelo nosso ordenamento jurídico máximo e vigente, e como se justificam.

            O conceito de igualdade não se limita ao fato dela constituir um dos direitos fundamentais do homem, concretizado na maioria dos textos constitucionais. A igualdade, também, constitui um dos elementos básicos para a efetivação e aplicabilidade da justiça, na medida que esta pode ser compreendida como realização da igualdade legítima.

            É importante esclarecer o conceito de legitimidade. Embora nem sempre se faça distinção entre legalidade e legitimidade no uso comum e até mesmo no uso técnico, entende-se por legalidade como um adjetivo que qualifica a conduta conforme a lei. Tudo aquilo realizado nos termos da lei é legal.

            O fato de uma conduta ser considerada legal decorre da existência de uma norma jurídica, a cujo preceito a conduta se enquadra.

            O termo “legitimidade” possui dois significados, um genérico e um específico. Em sua acepção genérica, legitimidade tem o sentido de justiça ou de racionalidade, e em sua acepção específica, legitimidade é definida como sendo um atributo do Estado. O poder legítimo é um poder cuja titulação se encontra alicerçada juridicamente.

            O legítimo pode ser o “verdadeiro”, o “genuíno”, “o originário”. A idéia de legitimidade é para aplicá-la à qualificação da norma jurídica.

            Portanto, como uma forma de esclarecer o sentido do título do artigo - Desigualdade Legítima - seria a desigualdade fundada no sentido de racionalidade e justificada pela Constituição Federal.

            A igualdade constitui tema de suma importância em nosso ordenamento jurídico. Tema este de grande preocupação e discussão desde os primórdios da civilização. Tanto é que um dos maiores filósofos clássicos, Aristóteles, defendeu o conceito de justiça ligado à igualdade, justiça proporcional – tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais; e justiça corretiva – meios de restabelecer a igualdade que foi rompida. Conceito este que está refletido na atual Constituição brasileira e na maioria dos textos constitucionais dos mais diversos países.

            A idéia de igualdade como isonomia apresenta-se como um dos elementos básicos para a caracterização da justiça e da efetivação da democracia. O princípio isonômico tem uma enorme importância política, principalmente numa democracia. A igualdade é considerada o pilar do sistema democrático.

            A igualdade perante a lei não exclui a desigualdade de tratamento em face da particularidade da situação. As distinções devem ser necessárias, racionalmente justificadas, jamais arbitrárias. Como escreve Ferreira Filho, seguindo a linha de Ekkehart Stein, “o princípio jurídico da igualdade reclama a adequação entre o critério de diferenciação e a finalidade por ela perseguida, consistindo no fundo numa proibição da arbitrariedade.”[1] 

            Para tanto, o presente artigo se limita a analisar o princípio jurídico da igualdade em face das desigualdades existentes entre as pessoas, coisas e situações permitidas por nossa Constituição.

 

1 PRINCÍPIO DA IGUALDADE

 

            A expressão “igualdade” designa a idéia de equivalente, de identidade, analogia e semelhança. É nesse sentido que o termo aparece no principio jurídico consagrado em vários artigos da Carta Constitucional vigente.

 

O artigo 5º, caput da Constituição Federal de 1988 declara:

 

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

 

            No caput do referido artigo 5º, a Constituição brasileira reconhece cinco direitos básicos: à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Todos os outros direitos incluídos nos incisos desse artigo são desdobramentos desses cinco, que são efetivamente os direitos fundamentais do homem.

            No preâmbulo da Carta o Legislador originário destacou um conjunto de valores para a sociedade brasileira, dentre os quais incluem-se a valorização dos direitos humanos e o combate a todos os tipos de discriminação, in verbis:

 

Nós representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

 

            Em outra passagem do mesmo Diploma legal, no artigo 3º, IV, o texto é mais explícito: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

            Das várias determinações proclamadas nas cartas máximas, a afirmação “todos são iguais perante a lei” é universalmente acolhida. Modernamente, o princípio se encontra enunciado nas constituições da maioria dos países.

            A regra “todos são iguais perante a lei” é destinada aos cidadãos e àqueles que estão sujeitos à ordem jurídica, como também, à própria legislação que não pode ser editada em afronta ao princípio da isonomia. O preceito igualitário é norma destinada, também, ao legislador, que está limitado a editar normas de acordo com os ditames constitucionais, sem que haja privilégios e nem perseguições. A lei, como instrumento regulador e limitador do ser humano, deve ser elaborada de forma eqüitativa e igualitária.

            A Constituição se propôs não só a enumerar direitos, mas também os deveres dos brasileiros e estrangeiros radicados no País. Entende-se, implicitamente, que os direitos fundamentais devem ser respeitados por todos, como uma forma de obrigação de todos aqueles que estão sujeitos às normas do ordenamento jurídico máximo, não somente pessoas físicas, mas também as jurídicas, pois os direitos inerentes às pessoas jurídicas são direitos das pessoas físicas, sócias ou beneficiárias. O próprio ordenamento reconhece o direito à existência das pessoas jurídicas, então seria inaceitável não revesti-la de outros direitos.

            O princípio da igualdade encontrou sua concretização positiva nos textos constitucionais de todos os países civilizados, numa garantia da personalidade humana, como a idéia básica da democracia. 

            O princípio da igualdade, quando proclamado no século XVIII e durante quase todo o século XIX, não se dirigia ao Poder Legislativo. Portanto, os seus abusos não eram controlados por nenhum outro poder ou norma. Era um princípio [ML1] que se restringia somente aos particulares e, no que tange ao poder público, somente ao Poder Executivo e ao Judiciário.

            Para ilustrar tal afirmativa, Von Ihering escreveu:

 

O Poder Legislativo não está, como o juiz, como o governo, colocado sob a lei, antes, está acima da lei. Cada lei que ele proclama, qualquer que seja seu teor, é, em direito, um ato perfeitamente legal. Portanto, em sentido jurídico, o legislador não pode cometer nunca uma arbitrariedade; sustentar o contrário seria o mesmo que dizer que lhe não assistia o direito de mudar as leis existentes; seria colocar o Poder Legislativo em contradição consigo mesmo.[2]

 

            No tocante ao Executivo, as Constituições dos séculos citados expressavam igualdade no acesso a cargos públicos ou na tributação; e ao Judiciário, igualdade na distribuição da justiça e proibição de tribunais privilegiados, ou de exceção.

            No final do século XIX o princípio em estudo passa a alcançar todos àqueles que estão sujeitos a ordem jurídica, como também os três poderes: Executivo, Judiciário e o Legislativo.

            Apontando uma tendência emergente, no final do século XIX, Pontes de Miranda afirma “que o princípio de isonomia se dirige a todos os poderes do Estado. É imperativo para a legislatura, para a administração e para a justiça”.[3] Aponta o referido doutrinador que há uma “igualdade perante a lei feita e uma igualdade perante a lei a fazer-se”.

 

1.1 O princípio da igualdade e o Poder Legislativo

 

A própria lei não pode ser editada em desconformidade com o princípio da igualdade. Segundo Seabra Fagundes:

 

Em verdade, sob pena de se ter como nenhum o sistema de direitos subjetivos constitucionais, o legislador se há de considerar sujeito ao princípio da igualdade, quando elabora, tanto as leis materiais, não podendo tratar desigualmente situações idênticas, nem com igualdade situações desiguais (sujeição imediata à Constituição), como quando vota as leis em sentido formal, que não pode servir de instrumento a tratamento preferencial ou opressivo, porque, à sua vez, necessariamente conforme as leis materiais preexistentes (sujeição mediata aos mesmos termos da Constituição).[4]

 

            Não restam dúvidas sobre a quem se dirige aqui o princípio da igualdade: precisamente ao legislador e, conseqüentemente, à legislação, que não pode ser fonte de privilégios e nem de perseguições, mas sim instrumento regulador e limitador da vida social, que necessita tratar todos igualmente.

            O legislativo como órgão competente para elaborar leis deverá estatuir normas gerais e abstratas, pois agindo assim estará sempre respeitando o princípio da isonomia.

            Paulo Bonavides afirma: “O órgão legislativo, ao derivar da Constituição sua competência, não pode obviamente introduzir no sistema jurídico leis contrárias às disposições constitucionais: essas leis se reputariam nulas, inaplicáveis, sem validade, inconsistentes com a ordem jurídica estabelecida”.[5]

            As nações latino-americanas, inclusive o Brasil, receberam forte influência dos Estados Unidos, quanto à forma de controle da constitucionalidade das leis. Segundo Faria, tal controle é, absolutamente, necessário como remédios às distorções contra o princípio da igualdade, sob o prisma do legislativo. De fato, se não se admitir a possibilidade do exame da atividade legislativa tem–se como estabelecida a ditadura ou, pelo menos, o arbítrio do segundo dos Poderes do Estado.[6]

            Não se pode deixar de mencionar a rigidez e a supremacia de nossa Constituição atual. É rígida no que se refere às alterações das normas jurídicas nela contempladas, ou seja, as modificações das normas inseridas na Carta Magna são feitas com certas restrições. Vários países adotaram a tese de que as leis deveriam ser revisadas, inclusive no Brasil, onde se tornou tradição albergada pela Constituição de 1934, 1946, 1967 e 1988.

            Segundo Paulo Bonavides:

 

As constituições rígidas, sendo constituições em sentido formal, demandam um processo especial de revisão. Esse processo lhes confere estabilidade ou rigidez bem superior àquela de que as leis ordinárias desfrutam. Daqui procede, pois, a supremacia incontrastável da lei constitucional sobre as demais regras de direito vigente num determinado ordenamento.[7]

 

            Dessa rigidez emana o principio da supremacia da Constituição – somente a Constituição confere poderes e competências governamentais. O princípio da supremacia requer que todas as normas estejam compatíveis com os princípios e preceitos constitucionais. É essa supremacia que faz da lei constitucional a lei máxima, superior a todas as outras, “a Lex legum, ou seja, a mais alta expressão jurídica da soberania”.[8] 

            Bonavides afirma que o controle de constitucionalidade das leis ora se apresenta como controle formal, ora como controle material.

            “O controle formal é, por excelência, um controle estritamente jurídico”.[9] Esse controle será feito pelo órgão que exerce a competência de examinar se as leis foram elaboradas de acordo com a Lei Máxima; ele terá a capacidade de julgar as leis quanto à constitucionalidade, eliminando aquelas que não forem compatíveis com os ditames da Carta Magna.

            O controle material de constitucionalidade incide sobre o conteúdo da norma. Desce ao fundo da lei, outorga a quem o exerce competência com que decidir sobre o teor e a matéria da regra jurídica, busca acomodá-la aos cânones da Constituição, ao seu espírito, à sua filosofia, aos seus princípios políticos fundamentais.[10]

            Quanto à natureza do órgão, o controle pode ser judiciário ou político. Alguns sistemas constitucionais entendem que o controle deve ser feito por um órgão, um corpo político, distinto do Legislativo, Executivo e Judiciário. Um órgão sério de natureza política, uma assembléia, um comitê constitucional. Esse controle por um órgão político nasceu na França, com a formação do Conselho Constitucional da Constituição de 1958. O chamado “controle político”.

            A Constituição Francesa, em seu artigo 62 estabelece: “as decisões do Conselho Constitucional não são suscetíveis de recurso e se impõem a todos os poderes públicos e a todas as autoridades administrativas e jurisdicionais”. O artigo 56 do mesmo diploma fixa a composição do Conselho: 9 (nove) membros com mandato de 9 (nove) anos, não podendo ser reconduzidos.

            Uma segunda forma de controle da constitucionalidade da lei, quanto à natureza do órgão, é o chamado “controle judiciário”, é aquele cujo exercício é de competência de um órgão jurisdicional. Essa forma de controle nasceu nos Estados Unidos. Este sistema consagra duas formas de controle: controle por via de exceção (controle concreto) e o controle por via de ação (controle abstrato).

 

         O controle por via de exceção, aplicado às inconstitucionalidades legislativas, ocorre unicamente dentro das seguintes circunstâncias: quando, no curso de um pleito judiciário, uma das partes levanta, em defesa de sua causa, a objeção de inconstitucionalidade da lei que se lhe quer aplicar.[11]

 

            Nesse caso é necessário que haja o conflito, ou seja, o caso concreto, e que o particular provoque o Poder Judiciário. A sentença que decide a controvérsia não anula a lei, somente não a aplica àquele caso em questão, e nada impede que em outro caso, perante o mesmo ou outro o juiz possa a mesma lei ser eventualmente aplicada. “A inaplicabilidade do ato inconstitucional dos Poderes Executivo, ou Legislativo, decide-se, em relação a cada caso particular, por sentença proferida em ação adequada e executável entre as partes”.[12]

            Alfredo Buzaid resume os princípios que regem o controle por via de exceção:[13]

a)      “O tribunal não se pronunciará sobre a constitucionalidade de uma lei, salvo em litígio regularmente submetido ao seu conhecimento”;

b)      Nenhum tribunal se manifestará sobre a validade de uma lei senão quando isso for absolutamente necessário para a decisão do caso concreto;

c)      A declaração de inconstitucionalidade importa nulidade da lei, não no sentido revogá-la, o que constitui função do Poder Legislativo, mas no sentido de lhe negar aplicação ao caso concreto;

d)      O exame sobre a inconstitucionalidade representa questão prejudicial, não a questão principal debatida na causa, por isso o juiz não a decide principaliter, mas incidenter tantum, pois ela não figura nunca como objeto do processo e dispositivo da sentença;

e)      O tribunal só conhecerá da alegação de inconstitucionalidade, quando ela emanar de pessoa, cujos direitos tenham sido ofendidos por lei”.

Quanto ao controle por via de ação, este permite o controle da norma por meio de uma ação de inconstitucionalidade prevista formalmente nos texto constitucional. “Nesse caso, impugna-se perante determinado tribunal uma lei, que poderá perder sua validade constitucional e conseqüentemente ser anulada erga omnes”.[14] Declarada a inconstitucionalidade, a lei é retirada da ordem jurídica a qual se apresenta incompatível.

            No sistema constitucional brasileiro as duas formas de controle de constitucionalidade das leis foram adotadas: o controle por via de exceção e o controle por via de ação.

A via de exceção no direito brasileiro inaugurou-se teoricamente com a Constituição de 1891, que estabeleceu recursos para o Supremo das sentenças prolatadas pelas justiças Estaduais em última instância.

            A Constituição Federal vigente em seu artigo 102, III dispõe:

 

Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

a)contrariar dispositivo desta Constituição;

b)declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;

c)julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. 

            Quanto ao controle de constitucionalidade das leis por via de ação, a segunda Constituição Republicana trouxe quatro inovações:

a)      como requisito indispensável à declaração da inconstitucionalidade da lei ou de ato do poder público foi instituído a maioria absoluta de votos da totalidade dos juizes;

b)      competência deferida ao Senado Federal para suspender a execução total ou parcial de qualquer lei ou ato;

c)      provocação do Procurador Geral da República para que a Corte suprema tomasse conhecimento da lei federal que houvesse decretado a intervenção da União no Estado-membro em caso de inobservância de certos princípios constitucionais, e lhe declarasse a constitucionalidade;

d)      a instituição do mandado de segurança.                

            Portanto, a Constituição brasileira vigente considera duas formas de inconstitucionalidades: por ação ou por omissão.

            Com a Constituição de 1988, em seu artigo 103 consideram-se legitimados a propor a ação de inconstitucionalidade da lei, tanto a inconstitucionalidade por ação como por omissão, não somente o Procurador-Geral da República, como também, o Presidente da República, Mesas do Senado Federal, das Câmaras dos Deputados, das Assembléias Legislativas dos Estados, pelo Governador do Estado, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional e pela Confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

            A inconstitucionalidade por ação caracteriza-se quando um preceito legal ou atos do Poder Público contrariam a Constituição. É a chamada Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIN. Esta ação visa à decretação da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual. Trata-se, aqui, de controle concentrado, ou seja, o único órgão para julgar as questões de constitucionalidade é o Supremo Tribunal Federal. 

            A Lei nº 9868/99 regula o processo dessa ação, bem como o efeito vinculante e eficácia contra todos e permitiu, em determinados casos, por razão de segurança jurídica e relevante interesse social, que a declaração de nulidade produza efeitos a partir de certo momento. A regra é que com o reconhecimento da inconstitucionalidade todos os efeitos já produzidos se desfaçam, deve operar retroativamente, ex tunc.

            Ainda mais, a citada lei estendeu ao Governador do Distrito Federal a legitimidade para propô-la, o que não conta no artigo 103 do texto constitucional.

            Há também uma outra ação prevista pelo artigo 102, I da Constituição e regulamentada pela Lei nº 9882/99 – Ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental. Trata-se de uma ação por meio da qual a decisão sobre a inconstitucionalidade de atos impugnados perante juizes e tribunais pode ser avocada pelo Supremo Tribunal Federal. Tal argüição pode ser proposta pelos legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade e terá os mesmos efeitos que esta.  

            A Emenda Constitucional nº 3/93 institui a Ação Direta Declaratória de Constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, regulamentada pela Lei nº 9868/99. Através dessa ação o Supremo Tribunal Federal declara ser a lei ou ato normativo federal adequado aos ditames da Carta Magna.

            Manoel Gonçalves Ferreira Filho esclarece:

 

Justifica-se esta criação pelo fato de que às vezes por longo tempo persistia a dúvida sobre a constitucionalidade de uma lei ou ato normativo federal, não tendo havido o julgamento final da argüição de inconstitucionalidade da mesma perante os tribunais e juízos inferiores. Por força da inovação, o Supremo Tribunal Federal, que antes só poderia ser chamado, por via direta, a manifestar-se sobre a inconstitucionalidade de uma lei, pode agora ser provocado para declarar a constitucionalidade da lei ou ato normativo federal.[15]

                                

            O Artigo 102, I da Constituição Federal estabelece:

 

Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I – processar e julgar, originariamente:

a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de lei ou ato normativo federal.

 

            Conforme dispõe o artigo 103, parágrafo 4º, com a redação da emenda nº 3/93, esta ação somente pode ser proposta pelo Presidente da República, pela Mesa do Senado Federal, pela Mesa da Câmara dos Deputados ou pelo Procurador da República.

            A decisão dessa ação também tem eficácia contra todos e efeito vinculante para os demais órgãos do Poder Judiciário, que deverão considerar constitucional a norma assim declarada pelo STF.

            A inconstitucionalidade por omissão caracteriza-se quando atos legislativos ou administrativos deixam de ser praticados, o que resulta na não aplicabilidade da norma constitucional. A Constituição, por exemplo, estabelece em seu artigo 205 que a “Educação é direito de todos e dever do Estado”. Se o Poder público não pratica os atos legislativos e administrativos necessários para a aplicabilidade efetiva dessa norma, estará ele sujeito a uma ação de inconstitucionalidade por omissão.  

            Em se tratando de omissão de lei, o Supremo Tribunal Federal dará ciência ao Legislativo, conforme estabelece o artigo 103, parágrafo 2º. Se a omissão for administrativa, o Supremo Tribunal Federal deverá fixar um prazo, no máximo de 30 (trinta) dias, para sua efetivação. 

            Quanto ao momento em que se aplica o controle de constitucionalidade, Paulo Bonavides distingue duas categorias de controle:

 

Controle prévio, que antecede a votação da lei, e o controle a posteriori, feito após a votação da lei. O primeiro se exerce durante a tramitação da lei, podendo nele intervir a segunda Câmara ou o Chefe de Estado. O controle político de mais autenticidade é, porém aquele que se faz a posteriori com a lei consequentemente promulgada (perfeita) ou pelo menos já votada.[16]     

 

            Manoel Gonçalves Ferreira Filho distingue duas formas de controle, quanto ao momento em que intervém. Controle preventivo (controle a priori) – este opera ante que a lei se aperfeiçoe; e o controle repressivo (controle a posteriori) – este se opera depois da elaboração da lei.

            Na Constituição brasileira vigente foram estabelecidas essas duas formas de controle. O controle preventivo é atribuído ao Presidente da República, que o exerce por intermédio do veto, de acordo com o artigo 66, parágrafo 1º do mesmo Diploma Legal. Esse veto, contudo, pode ser superado pelo Congresso Nacional. Esta deliberação do Congresso não exclui a possibilidade de ser analisada pelo Poder Judiciário, e por este ser declarada inconstitucional. O Controle repressivo é atribuído ao Poder Judiciário.

            Quanto ao processo de criação de uma norma, pode-se distinguir três momentos jurídicos diferentes e teoricamente passíveis de serem atingidos pela isonomia: a) momento anterior à elaboração da lei; b) momento da elaboração desta, e finalmente, c) momento de sua aplicação.        

 

1.2 O princípio da igualdade e o Poder Executivo

 

O Poder Executivo, em seu campo de atividades, não pode praticar nenhum ato contrário ao preceito igualitário. Os atos administrativos devem passar ainda pelo crivo não só da constitucionalidade, como também da legalidade.

            Como uma forma de evitar contrariedades ao princípio igualitário, a atual Carta de 1988 estabelece o Habeas Corpus, no artigo 5º, inciso LXVIII – “Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”, e o mandado de segurança no mesmo artigo, inciso LXIX – “Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas- corpus ou habeas- data, quando o responsável por ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”.

            O mandado de segurança protege direito líquido e certo, direito efetivamente existente. Segundo Bastos, o Ministro Sálvio de Figueiredo explica o significado da expressão “direito líquido e certo”, “para fins de mandado de segurança, pressupõe a demonstração de plano do alegado direito e a inexistência de incerteza a respeito dos fatos”.[17]

            No Direito Brasileiro, descreve Faria, “a garantia mais adequada e melhor formulada contra distorções do princípio da igualdade é a fixada pelo mandado de segurança”.[18]

            O habeas corpus é voltado à proteção da liberdade física do indivíduo, garantidor da liberdade pessoal, ou seja, o direito do indivíduo não poder sofrer constrição na sua liberdade de locomoção em razão de violência ou coação ilegal.  

 

1.3 O princípio da igualdade e o Poder Judiciário

 

Implica na igualdade perante a Justiça, com a eliminação de foro privilegiado ou de exceção, e a instituição do princípio do juiz natural – “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. (artigo, 5º, XXXV da C.F/88).

            Na ocorrência de controvérsia, lesão ou ameaça de direito surge para o prejudicado o direito subjetivo de levar a questão à apreciação do Poder Judiciário.

            Portanto, compete ao Poder Judiciário controlar os atos legislativos e executivos. Cabe agora indagarmos, quem controlará os atos do próprio Poder Judiciário?

            A correção de falhas e erros do Poder Judiciário é feita através de recursos, que serão submetidos a reexame por órgão hierarquicamente superior ao prolator daquela falha ou erro.

            Sabe-se que há um projeto de Reforma do Poder Judiciário, em que uma das propostas é a criação de um Conselho Nacional de Justiça, integrado por juristas não selecionados entre Magistrados, com a participação do Procurador Geral da República e do Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, com a finalidade de controlar, fiscalizar e organizar os atos do Poder Judiciário.

Atualmente, portanto, a proteção aos direitos individuais alcança igualmente tanto os brasileiros, como os estrangeiros residentes no país, ou seja, é extensiva a todos aqueles que estão sujeitos à ordem jurídica brasileira, inclusive ao Estado, nas funções legislativa, executiva e judiciária.

 

2. DESIGUALDADE LEGÍTIMA

 

            Ao analisar o artigo 5º, caput da Constituição Federal e o próprio conteúdo do mesmo, percebe-se que, de um lado, o próprio ditame constitucional impede a desequiparação por motivo de raça, sexo, trabalho, credo religioso e convicções políticas; e, de outro, evidencia traços característicos de pessoas, coisas ou situações que podem dar origem a desigualdades.

            Como vimos, a Constituição Federal de 1988 também consagrou o princípio da igualdade, prevendo a igualdade de tratamento a todos perante a lei, em conformidade com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são diferenciações arbitrárias, somente sendo lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho ratifica:

 

O princípio da igualdade não proíbe de modo absoluto as diferenciações de tratamento. Veda apenas aquelas diferenciações arbitrárias. Assim, o princípio da igualdade no fundo comanda que só se façam distinções com critérios objetivos e racionais adequados ao fim visado pela diferenciação.[19] 

 

            Segundo Canotilho existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não tiver um sentido legítimo e nem estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável e sério.

            O mesmo autor complementa:

 

O princípio da igualdade proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo constitucionalmente relevante. Proíbe também que se tratem por igual situação essencialmente desigual. E proíbe ainda a discriminação: ou seja, as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas.[20]

 

            Portanto, para verificar se as desequiparações existentes nas pessoas, coisas ou situações ofendem ou não o principio em estudo é necessário que seja analisado alguns critérios, a saber:

a)      verificar qual é o elemento diferenciador;

b)      se há justificação lógica e racional que autoriza tal diferenciação ;

c)       se esta justificativa é compatível com os ditames expostos na Constituição Federal.

            Fica sublinhado que não basta a exigência de pressupostos fáticos diversos para que a lei distinga situações, pessoas ou coisas, sem ofensa à isonomia. Também não é qualquer fundamento lógico e racional que autoriza a diferenciação; é necessário e indispensável que esta se oriente pelas linhas de interesses prestigiados pela nossa Constituição.

            Conforme discorre Celso Antônio Bandeira de Mello:

 

Tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o especifico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação e o fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia com eles.[21]

 

            Neste mesmo sentido, esclarece Pimenta Bueno, em Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império: “A lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade e prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania”.[22]

            Para que não haja agravos à isonomia, o traço desigualador adotado deve residir na pessoa, coisa ou situação a ser diferenciada, não pode ser sujeita a desigualdade se o traço diferencial não existir nelas mesmas.  Como também a lei não pode direcionar o critério diferencial para uma pessoa determinada singularmente.

            A lei que singulariza o destinatário agride de forma nítida o princípio constitucional da igualdade.

            Sem contrariar a isonomia a norma pode alcançar um determinado grupo de pessoas ou até mesmo um indivíduo, desde que seja um sujeito indeterminado, como conceder um benefício para o primeiro que fizer determinada invenção.

            Percebe-se que o princípio em estudo, além de garantir constitucionalmente a igualdade entre os homens, tem como finalidade proibir de forma implícita o favoritismo e as perseguições.

            Importante destacar, de forma breve, que a lei pode ser geral ou individual – o primeiro caso se caracteriza quanto atinge uma categoria de pessoas; e o segundo, quando atinge um único sujeito.

            Celso Antônio Bandeira de Mello, em O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, entende, em contraposição ao pensamento de Norberto Bobbio, que a lei classificada como abstrata contém como uma de suas características, além da reprodução da situação, a generalidade. Para ele, a norma abstrata é simultaneamente geral, embora deixe claro que a generalidade nada predica quanto à abstração, ou concretização da norma.

            O referido autor aduz ao tema ainda outras considerações relativas à natureza e abrangência das normas, que seria útil reproduzir:[23]

“a) a regra simplesmente geral nunca poderá ofender a isonomia pelo aspecto da individualização abstrata do destinatário, vez que seu enunciado é, de si mesmo, incompatível com tal possibilidade;

b) a regra abstrata também jamais poderá adversar o principio da igualdade no que concerne ao vício de atual individualização absoluta, ou definitiva, pois a renovação da hipótese normativa acarreta sua incidência sempre sobre uma categoria de indivíduos, ainda que, à época de sua edição, exista apenas uma pessoa integrando-a;

c) a regra individual poderá ou não incompatibilizar-se com o princípio da igualdade no que atina à singularização atual absoluta do sujeito. Será conveniente com ele se estiver reportada a sujeito futuro, portanto atualmente indeterminado e indeterminável. Será transgressora da isonomia se estiver referida a sujeito atual, determinado e determinável;

d) a regra concreta, igualmente, será ou não harmonizável com a igualdade. Sê-lo-á, quando, ademais de concreta, for geral. Não o será quando, sobre concreta, for, no presente, individual”.     

            Suponha-se que uma norma estabelecesse que, após determinado período, os sujeitos alcançados por ela seriam beneficiados por um período de férias, assim como estabelece o artigo 130 da Consolidação das Leis do Trabalho, que dispõe: o empregado adquire o direito às férias após completar 12 meses de trabalho. Analisando esta norma, constata-se que o fator “tempo” em nada ofende o princípio da isonomia, apenas demarcou-se uma data para que, a partir dela, TODOS os empregados tenham direito às férias.

            Como já afirmado, o fator discriminatório deve residir na própria pessoa, coisa ou situação. “O tempo nada mais faz que recobrir acontecimento ou acontecimentos que são eles mesmos as próprias raízes da desequiparação realizada”.[24]

            Portanto, a norma não pode considerar o “tempo” como fator determinante para justificar de forma legal a desigualdade entre as pessoas. O que pode tomar como elemento discriminatório é a situação, o fato delimitado pelo tempo. 

            Esclarece Celso Antônio Bandeira de Mello que:

 

O princípio da igualdade preceitua que sejam tratadas igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais. Donde não há como desequiparar pessoas e situações quando nelas não se encontram fatores desiguais. E, por fim, consoante do averbado insistente, cumpre ademais que a diferenciação do regime legal esteja correlacionada com a diferença que se tomou em conta.[25]

 

            Ademais, há que se recordar que um dos aspectos de análise para verificar se uma norma agride ou não o princípio da igualdade é a existência ou não de correlação lógica entre o fator da discriminação e a desigualdade estabelecida, ou seja, tem-se que identificar qual é o fator da desigualdade e se há justificativa lógica e racional para tal diferenciação.

            De forma simples e clara, explica Alexandre de Moraes:

 

Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não-discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com os critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos.[26] 

 

            O fator de discriminação pode ser qualquer elemento existente na coisa, pessoa ou situação, todavia necessita ter correlação lógica com a diferenciação que dele resulta. 

            Como exemplo deste aspecto: suponha-se lei que regulamentasse que pessoas negras da empresa X não pudessem ter folga aos domingos. A ausência da correlação entre o fator de discrímen e os efeitos que dele decorrem é vista, nesse caso, de forma nítida, agredindo flagrantemente o princípio de isonomia.

            Há que se considerar também que a correlação lógica aludida nem sempre é absoluta; basta considerar um momento histórico e parecerá justificável vedar às mulheres o acesso a certas funções, sendo que, em outras épocas, inexiste motivo racionalmente subsistente que convalide a vedação.

            Salienta Celso Antônio Bandeira de Mello:

 

A lei não pode conceder tratamento específico, vantajoso ou desvantajoso, em atenção a traços e circunstâncias peculiarizadoras de uma categoria de indivíduos se não houver adequação racional entre o elemento diferencial e o regime dispensado aos que se inserem na categoria diferenciada.[27]

 

            Ao interpretar a lei, é necessário que haja uma certa cautela quanto ao fato da lei assumir, de modo claro e explícito, o fator reputado como desequiparador. Isto é, circunstâncias ocasionais, que proponham sutis distinções entre categorias de pessoas, não são de considerar.

            Para que a diferenciação estabelecida não seja ofensiva à igualdade, ou seja, para que a desigualdade construída seja legítima, é essencial e indispensável que esta não seja contrária aos ditames constitucionais, e para isso é necessário que:

a)      a desequiparação não alcance um indivíduo determinado e atual;

b)      a desequiparação resida nos traços das próprias pessoas, coisas e situações;

c)      que exista a correlação lógica entre o fator discriminatório e a distinção estabelecida em função dele;

d)      a diferenciação deve estar em plena consonância com a Constituição Federal; 

            Alguns exemplos demonstram que espécie de elementos existentes nas coisas, pessoas ou situações, podem ser determinantes da desigualdade, sem colidir com o principio da igualdade garantido, na Constituição Federal. Como, por exemplo, no que tange a matéria tributária, ela se realiza com base na renda do tributado, e isso não constitui violação ao principio isonômico, ao contrário afirma Pontes de Miranda: “esse critério serve a maior igualdade, de que o principio da igualdade perante a lei foi justamente um dos pontos avançados na luta contra as distinções entre os seres humanos”.[28]

            “Não desatende a igualdade geométrica exigindo-se de quem ganha dez milhões, cinco vezes mais de impostos do que daquele que ganha dois”.[29]

            O parágrafo 1º do artigo 145 da Constituição Federal estabelece:

 

Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração pública, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais  e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.

 

            A expressão “sempre que é possível” representa o reconhecimento de que certos impostos não tem a condição pragmática de levar em conta a capacidade econômica.

            Tal artigo vem ratificado pelo artigo 150, II do mesmo ordenamento jurídico, quando determina que é vedado às pessoas de direito público “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão da ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”. O elemento diferenciador nesse texto é que sejam tratados de forma igual aqueles contribuintes que se encontrarem na mesma situação, e de forma desigual os que estiverem em outra situação – como exemplo de efetividade da frase afirmada por Aristóteles “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”. Portanto, há justificação lógica, racional e legal que autoriza tal desigualdade.

            Assim como também não se pode considerar violação ao principio em estudo o texto da lei que estabelece o pagamento de indenização aos que não tem recursos, em caso de inundação ou de outra calamidade pública. A justificação para o pagamento de indenização para determinadas pessoas, em determinadas situações, autoriza a existência da diferenciação.

            Supondo-se a existência de concurso público para preenchimento de vaga somente na área de assistentes sociais, a exclusão das outras profissões não significa ofensa à isonomia, pois a inexistência de profissional ocupando esta vaga justifica tal diferenciação. O mesmo ocorre em concurso público para o cargo de policia feminina - somente mulheres podem participar do referido concurso e isso não significa ofensa nenhuma ao princípio da igualdade.

            Concurso para participar de propaganda de uma loja de confecções para pessoas que pesam mais de 100 kilos. Nenhum agravo existirá ao principio da igualdade na exclusão de pessoas que pesam menos de 100 kilos. O fato de que a confecção das roupas é direcionada para pessoas de mais de 100 quilos justifica tal diferenciação.

            Como já foi afirmado anteriormente, em concurso público para a polícia militar, faz-se discriminação por peso e idade. O aspecto físico avantajado é característica fundamental para o profissional que lida com a criminalidade. Um policial incapaz de correr será quase que completamente inútil numa situação de risco. Há desigualdade nesse concurso, mas é perfeitamente razoável e não atenta contra a ordem constitucional.  

            O princípio de igual acesso às funções e cargos públicos, significa que todos devem ter as mesmas oportunidades, e ainda que a lei não pode prescrever qualquer requisito subjetivo, como, idade, sexo, classe social, cor, religião, crenças políticas ou naturalidade de alguma região. Os requisitos objetivos podem ser exigidos – técnica, especializações, antecedentes morais, índices psicobiológicos, forca física. Esta é a regra, porém em nada impede que o texto da lei aponte um elemento subjetivo ou objetivo como fator diferenciador, desde que sejam respeitados os critérios já apontados.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

            Este estudo teve por objeto a análise do princípio jurídico da igualdade, não somente sob o prisma doutrinário como ainda sob o ângulo prático, ou seja, da efetiva aplicação do princípio da igualdade; e, ligado a isso, os critérios básicos e fundamentais para que o princípio em questão não seja ofendido. Critérios que devem ser respeitados por todos aqueles que estão sujeitos ao ordenamento jurídico, inclusive o legislador, que não pode elaborar normas que ofendam o princípio em questão.

            Sob o prisma da aplicação desse princípio, convém notar que a idéia de igualdade sempre existiu, porém a acepção de uma igualdade universal passou a ser efetivada a partir do cristianismo e transformou-se em regra do direito positivo, transcrita nas principais declarações e Constituições do mundo todo. O que passou a ser um dos direitos fundamentais do ser humano, devendo ser objeto de aplicação a todos em geral, como, ainda, ao poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. 

             Ainda mais, a presente dissertação focalizou o princípio jurídico da igualdade quanto à Constituição Federal de 1988, mais precisamente em seu artigo 5º, caput, que impede a desequiparação por motivo de raça, sexo, trabalho, credo religioso e convicções políticas; e, implicitamente, evidência traços característicos de pessoas, coisas ou situações que podem ser tomados como discriminantes legítimos.

            Para que essa desigualdade não ofenda o princípio da igualdade, é necessário que sejam observados alguns critérios: verificar qual é o elemento diferenciador, se há justificação lógica e racional que autoriza tal diferenciação, se esta justificativa é compatível com os ditames expostos na Constituição Federal. O que se veda são as desigualdades arbitrárias, sem fundamento lógico, racional e nem legal.

            Por todo o exposto, é evidente a importância do princípio da igualdade. Os estudos e debates sobre o assunto são fundamentais para que sua aplicação seja cada vez mais efetiva, eliminando, ou pelo menos diminuindo a aprovação de normas jurídicas que criam privilégios, vantagens e diferenciações injustificadas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2001.

BUENO, José Antônio Pimenta. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, 1958.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. São Paulo: Almedina, 2000.

FAGUNDES, Miguel Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 1957.

FARIA, Anacleto de Oliveira. Do Princípio da Igualdade Jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999.

      .Comentários à Constituição Brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 2000.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Democracia, Liberdade e Igualdade (Os três caminhos). Rio de Janeiro: José Olympio: 1979.

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Conteúdo Jurídico do Principio da Igualdade. São Paulo: Malheiros, 1999.

MORAES, Alexandre. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2000.

VON IHERING, Rudolph . A Evolução do Direito. Salvador: Progresso, 1953.


 

NOTAS:

[1] Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 2000, p.28.

 [2] Von Ihering, Rudolph. A Evolução do Direito. 1953, p.297.

[3] Miranda, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946.. 1947, p.165.

[4] Fagundes, Miguel Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 1957, p.238.

[5] Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 2001, p.268.

[6] Faria, Anacleto de Oliveira. Do Princípio da Igualdade Jurídica. 1977, p.87.

[7] Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 2001, p.267.

[8] Idem.

[9] Idem, p.268.

[10] Idem.

[11] Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 2001, p.272.

[12] Idem, p.274

[13] Idem.

[14] Idem, p.277.

[15] Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 2001, p 41.

[16] Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 2001, p.271.

[17] Bastos, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 1996, p.247.

[18] Faria, Anacleto de Oliveira. O Princípio da igualdade jurídica. 1977, p.103.

[19] Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 2001, p.277.

[20] Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4ª edição, p.419.

[21] Mello, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 1999, p.21.

[22] Bueno, José Antônio Pimenta. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império.1857, p.424.

[23] Mello, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 1999, p.19.

[24] Mello, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 1999, p.32.

[25] Idem, p.35.

[26] Moraes, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais. 2000, p.92.

[27] Mello, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 1999, p.34.

[28] Miranda, Francisco Cavalcanti Pontes de. Liberdade, Igualdade e Democracia.1979, p.487. 

[29] Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 2001, p.277.

 

 


 

(*)  Mestre em Teoria do Estado e do Direito pelo Programa de Mestrado da Fundação de Ensino “Eurípides Soares da Rocha”, Brasil

E-mail:  mfat@sercomtel.com.br

 


 

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