Derecho y Cambio Social

 
 

 

HOMENS E NORMAS DE CONDUTA : UM ENFOQUE NATURALISTA

 Atahualpa Fernandez ÓÆ


 

Se dermos por correta a afirmação de que qualquer teoria social normativa (ou jurídica) que pretenda ser digna de crédito na atualidade deve sustentar-se em um modelo darwiniano sensato sobre a natureza humana (Rose)[1] e se em todos os lados encontramo-nos diante de um patamar co-evolutivo natureza/cultura, não é de admirar que as normas de conduta joguem um papel crítico na vida humana, uma vez que permitem recrutar determinadas faculdades, sistemas de pensamento e outras fontes de informação que confirmem completamente e por vezes contradigam as conclusões de nosso sistema cognitivo, intuitivo e emocional. Isto, por si só, já deveria ser uma razão suficiente para dar-se conta da evidência empírica de que as normas jurídicas, enquanto artefatos culturais, podem proporcionar soluções superiores e mais razoáveis relativamente aos problemas de ordem e de interação social do que a nossa “racionalidade”, intuição e emoção atuando sozinhas.

Pois bem, particularmente com relação ao ser humano, do desenho produzido pela seleção natural que atuou sobre nossos genes e sobre nossos comportamentos durante um largo período evolutivo, este parece haver resultado de uma feliz combinação entre o instintivo e o reflexivo. Se nossos programas ontogenéticos cognitivos exigissem que a atividade consciente controlasse todos os fenômenos que dizem respeito a nossa existência, ficaríamos de tal modo absorvidos com essa ingente e dispendiosa tarefa que, por certo, não nos restariam disponibilidades de ação para mais nada.

 Por outro lado, se todos os nossos processos comportamentais fossem estritamente dominados por nossos instintos, seguramente não teria nenhum sentido o fato de que grande parte do crescimento de nosso cérebro teve lugar no neocórtex, a sede das funções superiores da mente e que incluem, de forma muito especial, a linguagem e seu produto baseado em símbolos, a cultura[2].

De fato, o que é verdadeiramente único na evolução humana, por contraposição, ponhamos o caso, à evolução do chimpanzé ou do lobo, é que uma parte considerável do ambiente que a modelou foi cultural: a mente e o cérebro humanos não são somente um produto combinado de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios, senão também de experiências, valores, aprendizagens e influências procedentes de nossa igualmente complicada e complexa vida sócio-cultural. Enquanto os animais estão rigidamente controlados por sua biologia, a conduta humana está amplamente condicionada pela cultura, um amplo sistema autônomo de símbolos e valores que, além de crescer e variar segundo o “substrato” genético que tomam como referente para atuar (por exemplo, do comportamento e dos códigos morais), encontra constrições cognitivas significativas no que diz respeito à sua percepção, transmissão e armazenamento discriminatório por parte do ser humano[3].

É que, embora capazes de sobre passar as limitações biológicas em muitos aspectos e de servir como eficaz instrumento de ampliação, restrição ou manipulação de nossas intuições e emoções morais[4], as representações culturais[5] não podem, contudo, variar arbitrariamente e sem limites: não são indefinidas, senão diversas até certo ponto. Daí que nossa conduta, as eleições que efetuamos e tudo mais que dizemos ou fazemos são um produto ou um resultado com bastante articulação funcional: um conjunto de estímulos sócio-culturais[6] que circulam por um sofisticado sistema de elaboração biológica.

Em razão desse complicado processo co-evolutivo - em que, por exemplo, os símbolos culturais que tratam com temas de sexo, comida e poder, desatam fortes reações e são mais prósperos em termos de transmissão porque se relacionam com aspectos de suma importância de nosso passado evolutivo ( Brodie)- , os homens , a partir de pequenas bandas de entre 70 e 150 caçadores-recoletores situados na savana e cuja sobrevivência dependia de forma inevitável e estrita da manutenção da coesão social, chegaram a multiplicar-se e concentrar-se progressivamente: primeiro em pequenas cidades e, mais tarde, em grandes nações até tender a transformar-se em uma “sociedade global”. É esse, de fato, salvando as distâncias, o mesmo esquema que conduziu ao grande ideal de “cidadania universal” próprio dos ilustrados Kant e Goethe e que por certo , dito seja de passo, dista em muito do filisteu processo de “globalização” neoliberal de nossa época.

Em qualquer caso, esse fenômeno vem acompanhado de um aumento acelerado tanto do conhecimento como da complexidade dos vínculos e das estruturas sociais – em particular no que diz respeito aos sistemas de informação e de comunicação entre os membros de nossa espécie –, coisa que permite uma interação muito mais intensa, ampla e rápida dentro dos grupos sociais e, em igual medida, exige um incremento substancial das normas integradoras da ação comum. Como conseqüência, o progressivo aumento da complexidade do intercâmbio recíproco exigiu (e continua exigindo) uma estratégia adaptativa baseada em uma capacidade para predizer as condutas cada vez mais sofisticadas, ou seja, em uma consistente padronização das ações e das conseqüências do complicado atuar humano.

E aqui chegamos às leis humanas – essa ferramenta cultural e institucional “cega”, virtualmente neutra e com potencial capacidade vinculante para predizer e regular o comportamento humano –, qualquer que seja sua natureza ou grau de imperatividade. E parece razoável supor que, igual que sucede agora, em todas as sociedades humanas existiram de contínuo normas para disciplinar a titularidade e o exercício de direitos (ainda que estes fossem em ocasiões muito precários) por parte dos membros do grupo, para assegurar o cumprimento de deveres, para viabilizar a coesão social e ampliar o conhecimento social dos membros de nossa espécie, assim como para desenvolver nossa inata capacidade de resolver conflitos sociais sem necessidade de recorrer à agressividade.

Normas capazes de sentar as regras de convivência com relação ao poder, a distribuição e o uso da propriedade, a estrutura da família ou de alguma outra entidade comunitária, a distribuição do trabalho e a regulação das trocas em geral. Normas que, por resolver determinados problemas adaptativos, plasmam no entorno coletivo e historicamente condicionado nossa capacidade e necessidade inatas de predizer o comportamento dos demais, de controlá-lo e de justificar mutuamente nossas ações.

Dito de outro modo, à medida que os vínculos sociais relacionais foram tornando-se cada vez mais complexos , a cultura humana cresceu e as pessoas se tornaram mais reflexivas (tanto a respeito de suas práticas, de suas reações como de suas interações), as normas de conduta transformaram-se em um conjunto normativo coativo mais elaborado, organizado e sofisticado; as bases generalizadas dos motivos para os projetos axiológicos mais antigos foram suplementadas, e algumas vezes substituídas, por razões e emoções humanas cuidadosamente elaboradas, à medida que o direito se converteu em um instrumento cultural cada vez mais eficaz em suas explorações no hiperespaço das possibilidades. E embora essa evolução normativa não implicasse a criação de normas necessariamente melhores, em qualquer sentido absoluto, eram contudo mais capazes de responder a demandas cada vez mais complicadas de populações que eram, biologicamente, bem semelhantes a seus ancestrais distantes, mas culturalmente ampliadas, tanto do ponto de vista da qualificação como da sobrecarga de tarefas e de interações sociais.

 De fato, nesse particular, e tal como parece haver ocorrido com a própria evolução biológica, o processo de evolução das normas não tem lugar de maneira linear, senão por meio de ensaios e erros. Os humanos se caracterizam por ensaiar distintas soluções normativas e adotar as que lhes parece mais eficaz em um determinado momento, até que seja possível substituí-las por outras que se revelam mais adaptadas aos seus propósitos evolutivos. Na medida em que a flexibilidade da conduta humana e a diversidade das representações culturais são, ainda que limitadas, amplas e, por outro lado, dado que as alterações culturais se podem transmitir com grande rapidez e eficácia, o processo da evolução normativa encontra-se sujeito a profundos sobressaltos e equívocos e inclusive , por vezes, a retrocessos significativos. É essa, talvez, a melhor explicação evolucionista das chamadas leis injustas.

Assim que a ordem jurídica emana da própria natureza humana (de sua faculdade de antecipar as conseqüências das ações, de fazer juízos de valor e de eleger entre linhas de ação alternativas) e não é algo que tenha sido imposto à condição humana pela cultura. Nossas manifestações culturais não são coleções casuais de hábitos arbitrários: são expressões canalizadas de nossos instintos, ou seja, de nossas intuições e emoções morais[7]. Por essa razão, os mesmos temas despontam em todas as culturas: família, ritual, troca, amor, hierarquia, amizade, propriedade, ciúmes, inveja, lealdade grupal e superstição. Por essa razão, apesar das diferenças superficiais de língua e costumes, as culturas estrangeiras têm sentido imediatamente ao nível mais profundo dos motivos, das emoções, dos hábitos e dos instintos sociais. E instintos, em uma espécie como a humana, não são programas ontogenéticos imutáveis: são predisposições para aprender e atuar.

Por certo que todo o processo evolutivo das normas jurídicas (desde as pequenas bandas até a sociedade global de que falamos a pouco) pressupôs um aumento considerável do número de representações culturais produzidas e acumuladas[8] pelo homem, numa profusão que atinge hoje dimensões quase que ilimitadas , e que , por sua vez, dá conta de nossa inata capacidade para imitar a conduta de nossos congêneres, isto é, para copiar-nos uns aos outros .De fato, parece evidente que parte da cultura que assumimos se aprende imitando a outras pessoas, a qual (imitação), por sua vez, requer uma grande quantidade de circuitos inatos no cérebro para poder funcionar. De modo que a cultura, em si mesma, requer umas habilidades mentais muito complexas e sofisticadas para criá-la, transmiti-la e assumi-la.

Seja como for, essa dupla ação natureza/cultura produziu, durante o largo curso de nosso processo evolutivo, algumas estratégias e mecanismos normativos desenhados com a intenção de que servissem para resolver determinados problemas adaptativos a eles associados. Se o propósito se alcança, assumimos e dizemos que tais mecanismos têm valor (que são bons) e, como tal, que são capazes de ir acumulando “tradições” que, não obstante em processo contínuo de renovação (da evolução acumulativa e renovada da cultura pelo efeito “ratchet”, de que nos fala Tomasello), se transmitem de geração em geração mediante atuações individuais de pessoas influídas por esse triplo conjunto de elementos procedentes da natureza, da cultura e da história, tanto recente como remota, da humanidade.

Poderia dizer-se, em síntese, que os códigos e enunciados normativos da espécie humana como um todo – dos valores éticos aos direitos humanos – são uma conseqüência peculiar de nossa própria humanidade, e que esta , por sua vez, “constitui o fundamento de toda a unidade cultural” (Maturana). Dito de outro modo, a origem de nosso comportamento normativo (ético/jurídico) não se encontra tanto no contrato social de Hobbes senão nas idéias do próprio Darwin, precursor dos etólogos. A origem está nos “instintos sociais “ dos animais, não somente no temor racional do egoísmo (Hobbes). Há uma prévia “empatia” ativa que desenha soluções compartidas. As condutas morais não somente são produto da história cultural, senão também da seleção natural. Se cabe falar de um “animal ético” que cumpre normas é porque os comportamentos altruístas e corporativos possuem um alto valor de sobrevivência.

E uma vez que a sociedade usa leis para encorajar as pessoas a se comportar diferentemente do que elas se comportariam na falta de normas, esse propósito fundamental não somente torna o direito altamente dependente da compreensão das múltiplas causas do comportamento humano como, e na mesma medida, faz com que quanto melhor for esse entendimento da natureza humana, melhor o direito poderá atingir seus propósitos[9] : sabemos que descendemos daqueles primeiros símios que começaram a andar sobre duas patas ; sabemos que todos os seres vivos usamos o mesmo código, e que estamos baseados no DNA ; somos essencialmente animais; animais falantes ou animais éticos , mas animais ao fim.

Assim que o projeto axiológico e normativo de uma comunidade ética nada mais é que um artefato cultural manufaturado e utilizado para possibilitar a sobrevivência, o êxito reprodutivo e a vida em grupo dos indivíduos. Serve para expressar (e por vezes, mas não infrequentemente, para controlar e/ou manipular) nossas intuições e nossas emoções morais, traduzindo e compondo em fórmulas sócio-adaptativas de ordenada convivência a instintiva e mesmo compartida aspiração de justiça que nos move no curso da história evolutiva e cultural própria de nossa espécie. Daí que as normas jurídicas ditem as práticas sexuais, fomentem certos tipos de vínculos sociais relacionais em detrimento de outros, regulem a liberdade e a igualdade e proíbam – em determinadas circunstâncias – a agressão e a violência.

E não parece ser outra a razão pela qual as normas jurídicas não são simplesmente um conjunto institucional de regras formalizadas destinadas a constituir uma razão (determinante e/ou moral) para o atuar dos indivíduos. Em vez disso, as normas jurídicas plasmam regras de condutas sociais, sobre as quais uma alta percentagem de pessoas concorda, que refletem as inclinações comportamentais e oferecem benefícios potenciais e eficientes àqueles que as seguem : quando as pessoas não reconhecem ou não acreditam nesses benefícios potenciais, as normas são, com freqüência, não somente ignoradas ou desobedecidas – pois carecem de validade substancial e de contornos culturalmente aceitáveis em termos de uma comum, consensual e intuitiva concepção de justiça –, senão que seu cumprimento fica condicionado a um mero critério de autoridade de duvidosa legitimidade. E uma prática social que não pretendesse nada mais que o poder ou a força não seria um sistema jurídico .

Dito de outro modo, a legitimidade da lei depende da circunstância de que esta expresse adequadamente as intuições morais e as obrigações percebidas pela sociedade (Morse). Com efeito, se há uma coisa que o pensamento evolucionista sobre a ética nos ensina é que as normas de conduta são uma necessidade, uma necessidade natural das sociedades humanas, as quais têm, como as outras, necessidade de regras , mas que, além disso, têm necessidade de justificações racionais para essas regras, para as poderem aceitar. A eficácia da regra não é para nós suficiente. Os homens têm necessidade de saber se a regra que seguem é legítima. É desta necessidade que deriva o naturalismo evolucionista em matéria de ética, pois há outras constantes que, do mesmo modo que a necessidade de normas de conduta, atravessam as culturas humanas e a sua história: há, em particular, a necessidade de encontrar causas, a necessidade de saber .

É certamente nisto que o homem revela a sua maior força: ele continua a querer erguer-se acima da animalidade de que se sente impregnado, viabilizando novos meios para regular a sua conduta e desmistificando o que, nos seus comportamentos, crenças e juízos, é a expressão oculta da natureza nele presente. Isto não significa que haja um combate entre a natureza e a razão, pois esta é o instrumento que se criou no decurso do processo evolutivo como uma resposta adaptativa às necessidades de sobrevivência de uma espécie viva essencialmente social. Assim que a interrogação sobre a ética e a investigação de normas de comportamento social racionalmente fundadas parece residir no suposto de que têm, em última análise, uma função sócio-adaptativa: trata-se de garantir de modo mais satisfatório a sobrevivência e a satisfação dos seres humanos e, afinal, a sua adequação adaptativa.(Kirsch).

Nesse particular sentido, parece razoável admitir que a justiça ou a moral encontram-se necessariamente vinculadas com o direito (Alexy): os valores da solução pacífica de conflitos e a cooperação social não podem ser realizados sem o direito, e ambos devem ser realizados, porque os direitos estariam em perigo se os conflitos sociais se resolvessem pela pura força, e porque a justiça e o bem estar geral não são possíveis sem cooperação social[10].

Com efeito, dispomos de normas de conduta bem afinadas porque nos permitem predizer, controlar e modelar o comportamento social respeito a reação dos membros de uma determinada comunidade. Estes artefatos, se plasmam grande parte de nossas intuições e emoções morais, não são construções arbitrárias, senão que servem ao importante propósito de, por meio de juízos de valor acerca do justo e do injusto (acerca de questões morais relativas à correção na distribuição e compensação), tornar a ação coletiva possível – e não seria nenhum exagero de nossa parte assumir que os seres humanos encontram satisfação no fato de que as normas sejam compartidas e cumpridas pelos membros da comunidade .

 E uma vez considerado o direito como um artefato cultural, uma estratégia sócio-adaptativa desenhada pelo homem para resolver os problemas adaptativos associados à complexidade de nosso estilo de vida social[11], esta parece ser uma das principais funções das normas jurídicas. Tais normas, por resolverem determinados problemas sócio-adaptativos práticos, modelam e separam os campos em que os interesses individuais, sempre a partir das reações do outro, podem ser válidos, social e legitimamente exercidos, isto é, plasmam publicamente não somente nossa inata capacidade (e necessidade) de predizer e controlar o comportamento dos demais senão também o de justificar e coordenar recíproca e mutuamente, em um determinado entorno sócio-cultural, nossas ações e interações sociais.

Estamos desenhados pela seleção natural para circunstâncias ecológicas e culturais distintas das atuais (o cérebro é um conjunto de máquinas processadoras de informação que foram desenhadas pela seleção natural para solucionar os problemas adaptativos aos que se enfrentaram nossos ancestrais caçadores-recoletores) e com uma mente dotada de módulos (domínio-específicos e ricos em conteúdo) que processam tanto os motivos inatos que conduzem a atos perversos como os motivos inatos que nos levam a evitá-los. Nossos sistemas perceptivos evolucionaram para construir modelos adequados ao entorno, para poder averiguar qual será o passo seguinte. Nosso cérebro está desenhado para resolver com eficácia as dificuldades que encontramos, eleger e tomar decisões.

Nossos vínculos sociais relacionais são, como resulta difícil negar, deficientes e nossa capacidade de predição e de antecipação das conseqüências das ações dista muito de ser perfeita, mas é em qualquer caso melhor que nada. Sem normas, não haveríamos evolucionado; não ao menos na forma em que o fizemos. Mas dispomos do direito e, com ele, promovemos em uns grupos tão complexos como são os humanos aqueles meios necessários para controlar e predizer as más e as boas ações, para justificar os comportamentos coletivos e, o que é mais importante, para articular, combinar e estabelecer limites sobre os quatro modelos elementares de vínculos sociais relacionais – comunidade, autoridade, proporcionalidade e igualdade - que entabulamos enquanto espécie desenhada pela seleção natural para a prática da sociabilidade.

 Poder-se-ia, inclusive, dizer que criamos um sistema complexo de justiça e de normas de conduta para canalizar nossa tendência à “agressão” decorrente da falta de reciprocidade e dos defeitos que emergem dos vínculos sociais relacionais que estabelecemos ao longo de nossa secular existência. A própria idéia de justiça – no seu sentido apenas humano, e quaisquer que tenham sido os significados que haja recebido ao longo da nossas várias vezes milenar história cultural – sempre quis exprimir a suprema axiologia da existência humana comunitária.

Graças ao universo jurídico, plasmado em último termo em normas e valores “explícitos”, os seres humanos conseguimos na interação própria da estrutura social um reparto ( ao que caberia chamar, com as cautelas necessárias acerca do conceito, “consensuado”) dos direitos e deveres que surgem na vida comunitária. O que talvez ainda falte é uma firme disposição para utilizar o direito como instrumento destinado a fomentar a virtude de cultivar o melhor da natureza humana e, do mesmo modo, reprimir o pior[12].

Compreender a natureza humana, sua limitada racionalidade, suas emoções e seus sentimentos parece ser o melhor caminho para que se possa formular um desenho institucional e normativo que, evitando ou reduzindo o sofrimento humano, permita a cada um conviver ( a viver com o outro) na busca de uma humanidade comum[13]: o modo como se cultivem os traços de nossa natureza e a forma como se ajustem à realidade configuram naturalmente o grande segredo da cultura , da civilização e de nossa própria condição de cidadão.

Assim que promover modelos institucionais, normativos e sociais por meio das quais a colaboração ou a cooperação se potencie simplesmente porque traz benefícios ( e justiça) para todos, parece ser a melhor alternativa a considerar para uma espécie essencialmente social como a humana e para a qual parece haver uma forte predisposição para seguir regras: as pessoas querem obedecer a regras e querem que as outras também o façam; elas sentem culpa quando deixam de fazê-lo e raiva quando isto ocorre com os demais.

E isto implica, depois de tudo, que já não mais parece resultar lícito e razoável tentar compreender o fenômeno jurídico por outro meio que não seja a da consideração de duas questões fundamentais:

a)      a primeira - porque a cultura é produto da mente humana-, que não se pode esperar explorar os caminhos da explicação social ou da avaliação jurídica e política sem ter uma visão de conjunto das pessoas e da sociedade, isto é, sem ter um desenho indicativo da natureza dos indivíduos e das diferenças ( não indefinidas e ilimitadas, registre-se) que os estímulos provenientes da vida social provoca neles e vice-versa ; e

b)      a segunda , é que tampouco se pode ter uma visão global das pessoas e da sociedade se não adotamos um desenho da sua constituição cognitiva, um desenho do que é estar psicologicamente equipado como seres humanos (na realidade, quanto melhor entendermos a natureza humana melhor podemos educar e formar cidadãos virtuosos).

Por conseguinte, nenhum filósofo do direito consciente das implicações práticas que sua atividade provoca, quase cotidianamente, no espaço público, quero dizer, nenhum filósofo do direito intelectualmente honrado, e que queira propugnar de verdade sua causa (quer dizer, honrado também na ação), pode desconsiderar a questão última do pensamento moderno: a do status do humano no reino da natureza (do ser humano considerado simultaneamente como um ser biológico, cultural, psicológico e social).

Afinal, o direito encontra-se entre os fenômenos culturais mais poderosos já criados pela humanidade, e precisamos entendê-lo melhor se quisermos tomar decisões políticas bem informadas e justas. Embora haja riscos e desconfortos envolvidos, nesse tema, devemos tomar fôlego e deixar de lado nossa relutância tradicional de investigar cientificamente os fenômenos jurídicos, de modo a compreender como e por que o direito inspira tal devoção, e descobrir como deveríamos aperfeiçoá-lo a partir do estabelecimento de elos com a natureza humana.

 

 


 

NOTAS:

 

Æ Para a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2006.

[1] Segundo Pinker, todo mundo tem uma teoria sobre a natureza humana. Todos temos de prever o comportamento dos demais, o qual significa que todos necessitamos umas teorias sobre o que é o que move às pessoas a adotar determinadas condutas. Uma teoria tácita da natureza humana – segundo a qual o comportamento é causado por pensamentos e emoções dos causadores da conduta- é ínsita ao modo como concebemos a pessoa. Damos corpo a esta teoria analisando nossa mente e supondo que nossos semelhantes são como nós, assim como observando o comportamento das pessoas e formulando generalizações. Ademais, também absorvemos outras idéias de nosso ambiente intelectual: da experiência dos expertos e da sabedoria convencional do momento. Nossa teoria sobre a natureza humana é a fonte de grande parte do que ocorre em nossa vida. A ela nos remitimos quando queremos convencer ou ameaçar, informar ou enganar. Aconselha-nos sobre como manter vivo nosso matrimônio, educar aos filhos e controlar nossa própria conduta. Seus supostos sobre a aprendizagem condicionam nossa política educativa; seus supostos sobre a motivação dirigem as políticas sobre economia, justiça e delinqüência. E dado que delimita aquilo que as pessoas podem alcançar facilmente , aquilo que podem conseguir somente com sacrifício ou sofrimento, e aquilo que não podem obter de modo algum, afeta a nossos valores: aquilo pelo que pensamos que podemos lutar razoavelmente como indivíduos e como sociedade. As teorias opostas da natureza humana se entrelaçam em diferentes maneiras de viver e em diferentes sistemas políticos, e tem sido causa de grandes conflitos ao longo da história.

[2] Assim, por exemplo, os animais não humanos matam, mas não cometem um “assassinato”: é impossível para um pássaro “assassinar” outro pássaro, porquanto a palavra “assassinato” se reserva para a morte intencionada, deliberada, iníqua, de um ser humano por outro (podemos matar um cachorro, mas não assassiná-lo e se um cachorro nos mata não é um assassinato). Da mesma forma, não parece razoável afirmar que um pato violou outro pato. E muito embora exista “canibalismo” sexual entre as aranhas ( as fêmeas esperam que o macho haja terminado de fecundá-las e então o matam e o comem), gaivotas “lésbicas”, gusanos “homossexuais” e pássaros “cornudos”, o significado destes termos só adquirem potenciação cultural quando produzidos e metabolizados por nosso mecanismo cognitivo neocortical e vinculados a aspectos da existência humana (Dennett).

[3] Sobre o conceito das “restrições cognitivas” acerca da aquisição, armazenamento e transmissão das representações culturais , assim como da transmissão cultural como um processo inerentemente seletivo (um “modelo seletivo” segundo o qual , dadas certas circunstâncias e tendo a população uma variedade de representações, algumas dessas representações têm mais probabilidade de armazenar-se na memória dos sujeitos e de transmitir-se a outros sujeitos: ao ser mais fáceis de aprender e de memorizar, tem um maior “valor de sobrevivência” que outras representações para sua transmissão cultural), cfr., por todos, Pascal Boyer : dadas as propriedades gerais da mente humana, certas representações têm mais probabilidade que outras de ser adquiridas e transmitidas, e de chegar, deste modo, a constituir os conjuntos estáveis de representações aos que os antropólogos chamam de “culturas”. Assim que os sistemas culturais podem e devem ser estudados como conjuntos de representações mentais adquiridas e armazenadas pela mente humana, já que os processos de aquisição e memorização impõem fortes constrições aos conteúdos e à organização das representações culturais. Note-se que Boyer trabalha com as idéias religiosas porque parecem ser a parte “mais cultural” da cultura e em conseqüência a menos suscetível de ser explicada em termos cognitivos. A partir daí, e contradizendo os pressupostos da antropologia cultural ( que costuma centrar-se em sistemas abstratos de “símbolos”, “códigos” ou “significados”, cujas propriedades se presumem independentes do modo em que estão representados na mente humana e parecem estar completamente restringidos e determinados ao modo como os sujeitos recebem e aprendem a partir da interação social – portanto, a suposição de que a transmissão cultural é primordialmente um processo passivo), considera que, se as hipóteses cognitivas são relevantes para a explicação das idéias religiosas, então outros aspectos das representações culturais seriam a fortiori passíveis desse tipo de descrição - aqui incluído, evidentemente, o direito. Recordemos que a idéia de que uma mente é modular implica que os processos mentais estão de alguma forma compartimentados já desde o nascimento, quer dizer, que existem estruturas inatas que definem certos domínios especializados no cérebro (domínios, por exemplo, relativos à visão, à linguagem, etc.) por meio dos quais se produz o conhecimento. A idéia de um dos psicólogos que mais estudou a maneira como se produz o desenvolvimento do mental, e que mais influiu na psicologia do desenvolvimento ontogenético (ao menos em Europa), Piaget, é totalmente distinta: o recém nascido não conta, segundo Piaget, com nenhum conhecimento inato específico de domínio ( note-se que, de modo similar, Vygotsky entendia que a cognição humana é totalmente de origem sócio-histórica e que a linguagem é a base do pensamento). Através dos reflexos e do processo de acomodação às influências provenientes do meio ambiente, a criança vai construindo um conhecimento do mundo de uma forma similar a como se desenvolvem as estruturas biológicas nos processos epigenéticos. Em síntese, a proposta epigenética de Piaget sustenta que o desenvolvimento cognitivo é um produto emergente de um sistema auto-organizativo que se encontra diretamente afetado por sua interação com o meio. Isso é tanto como dizer que é a dependência do meio a que vai determinar que o desenvolvimento cognitivo vá em uma direção ou outra. A idéia de modularidade, pelo contrário, estabelece que existem uns determinados domínios mentais prefixados – estabelecidos de forma inata – e específicos de certas operações cognitivas, como podem ser a linguagem ou a percepção, para citar apenas dois facilmente relacionáveis com a teoria da mente modular. Seja como for o meio ambiente, o que se desenvolverá é esse domínio específico relacionado com um módulo mental. Por outro lado, e como mínimo, tal como sustenta Sperber , isto explica que o suposto implícito em muitas teorias da transmissão cultural de que a mente é um processador de informação equipotencial – o suposto de que as representações mentais com distintos conteúdos são igualmente fáceis de ser transmitidas – é falso: as representações cujo conteúdo encaixa em um domínio para o qual temos mecanismos especializados serão transmitidas de modo muito distinto daquelas que não encaixam nesse domínio; em segundo lugar, acaba com a grande dúvida sobre se o indivíduo é um receptor passivo da transmissão cultural (tal como defendido pelo relativismo cultural, no sentido de que todos os aspectos da conduta humana se aprendem, diferem e podem diferir por completo em distintas culturas), o que , de fato, não o é : é a mente humana a que impõe constrições significativas para a percepção , a transmissão e o armazenamento discriminatório de representações culturais.Em palavras de Pinker , “ a complexidade da mente não se deve à aprendizagem, senão que o aprendizado se deve à complexidade (modular) da mente humana”.

[4] Aqui se coloca o problema de que as intuições e as emoções morais da gente podem estar irreparavelmente marcadas por seus interesses. Também é possível, e inclusive não infrequente que uma diferença de intuições morais de origem biológica seja amplificada pela elaboração cultural dessas intuições: sabemos que os ciúmes sexuais masculinos (desenvolvidos evolutivamente como uma estratégia psicológica para proteger a certeza masculina da paternidade), uma vez manipulados pela elaboração cultural, podem causar sofrimentos, inclusive até a morte, a muitas mulheres do mundo, amplificada que pode ser até o execrável uma diferença de intuições morais de origem biológica. Assim, por exemplo, determinadas hipóteses biológico-evolucionárias sobre a filogênese humana e o estudo etológico do comportamento de nossa espécie coincidem em insistir no chamado “lado escuro da sexualidade masculina” (Wilson e Daly). De acordo com esta tese, o comportamento sexual masculino estaria em boa medida guiado pelo temor do “cuco”: pelo temor à promiscuidade de sua companheira feminina e a conseqüente inversão de recursos próprios na criação de filhos alheios. Daí derivaria umas tendências “proprietaristas” sobre as mulheres, isto é, umas intuições morais tendentes a considerar a mulher como uma propriedade. Dessas intuições digamos “naturais” – para seguir com a hipótese – se pode fazer elaborações culturais muito distintas: desde a “mulher dona de casa” de nossa cultura, até a ablação de clitóris, habitual em certas culturas norte e centro-africanas, passando pelo chador islâmico e a vendagem e a molduração dos ossos dos pés da tradição chinesa. Um triunfo (perverso) da cultura sobre a espontaneidade e a natureza. Neste tipo de culturas, que amplificam até as abomináveis disposições de raiz presumivelmente biológicas, parece difícil achar soluções menos radicais que a posta em marcha pelo governo revolucionário da China em 1949: varrer sem contemplações toda a tradição cultural (Domènech).

[5] Com relação a cultura, parece razoável admitir que os mecanismos psicológicos condicionam em boa parte o tipo de traços culturais que se manifestam e se transmitem nos grupos humanos. Por outro lado, se supõe que estes mecanismos são compartidos por todas as pessoas e que, por essa razão, hão de ser perfeitamente compatíveis com a diversidade de comportamentos e culturas existentes em nossa espécie. Segundo Sperber, uma ciência naturalista da cultura poderia denominar-se epidemiologia das representações e deveria explicar porquê algumas representações são mais exitosas – mais contagiosas – que outras. Desde uma perspectiva epidemiológica, toda informação que os seres humanos introduzem em seu entorno se pode considerar como competidora do tempo e do espaço públicos e privados ( no sentido de que, entre todas as representações presentes em um grupo humano em um momento dado, algumas se difundirão e perdurarão, enquanto que outras terão lugar somente de maneira breve e muito local), isto é, que competem pela atenção, a memória, a transmissão e o armazenamento externo. São muitos os fatores que afetam as possibilidades de que uma informação (crença ou representação cultural) tenha êxito e alcance um nível de distribuição amplo e duradouro, quer dizer, que forme parte da cultura de maneira estável. Alguns destes fatores são psicológicos e outros são ecológicos. A maior parte deles são relativamente particulares, ainda que existam alguns bastante gerais. O fator psicológico mais geral que afeta a distribuição da informação é a compatibilidade e a correspondência com a organização modular cognitiva humana. Desde um ponto de vista modular, as crenças ou representações que são estáveis em uma população são as que desempenham um papel fundamental na organização modular e no procedimento do conhecimento. Boyd e Richerson , Cavalli-Sforza e Feldman e Dawkins , propuseram abordagens evolucionárias ou epidemiológicas da cultura que são comparáveis às de Sperber, não obstante a epidemiologia das representações proposta por este autor apresente diferenças com relação aos demais enfoques 1) porque enfatiza a importância dos mecanismos cognitivos individuais na explicação geral da cultura e 2) porque sustenta que a informação se transforma cada vez que se transmite até um ponto tal que resulta inapropriada qualquer analogia com a reprodução ou a replicação biológica. (cfr. nota seguinte). Resumindo: o problema não consiste, portanto, em insistir na diversidade cultural, senão em utilizá-la como evidência empírica que nos permita averiguar que classe de mecanismos cognitivos a tornaram possível. De fato, a extraordinária riqueza humana é um tronco comum – uma natureza humana – a partir da qual existem possibilidades insólitas de (limitada) diversidade individual e cultural. Assim que realizar a unidade da espécie humana respeitando ao mesmo tempo sua (limitada) diversidade não somente é uma idéia de fundo, senão que também deve consistir em um projeto da própria humanidade. Para novos desenvolvimentos importantes nesta área ver também Cosmides e Tooby .

[6] A que Richard Dawkins denominou memes: termo que, por analogia com genes, define a um módulo de informação contagioso que infecta e contamina a mente humana, donde se replica e altera sua conduta , provocando sua propagação. Assim, da mesma forma que os genes, supõe-se que os memes são replicadores em um meio diferente, mas sujeitos aos mesmos princípios da evolução dos genes. Trata-se de elemento de uma cultura qualquer digno de ser transmitido por procedimentos não genéticos, especialmente por imitação. Poder-se-ia dizer, inclusive, que um meme é qualquer coisa que se transmite de uma pessoa a outra por imitação (as histórias que conhecemos, as canções, as frases feitas, os slogans, as leis que acatamos, etc.). A imitação é uma modalidade de replicação ou de cópia e isto é o que institui o meme como replicante e lhe outorga, ademais, sua capacidade de replicação. Por conseguinte, o termo “imitação” inclui desde o fato de passar informação por meio da linguagem, da leitura e da inculcação, até o desenvolvimento de outras habilidades e condutas mais complexas (aprendizagem social). O ato de imitar compreende qualquer tipo de cópia de idéias e de conduta de uma pessoa a outra: quando ouvimos uma história e a transmitimos, ainda que seja apenas em essência, a outra pessoa, efetuamos uma cópia, transferimos “algo”: esse “algo” é um meme. E ao contrário de qualquer outro animal, imitamos espontaneamente a quase qualquer coisa e a qualquer um e, o que é mais intrigante, parece que gostamos de fazê-lo (Blackmore). Em resumo, porque herdamos a predisposição para imitar o vizinho (Ridley), parece ser mais fácil e quase sempre melhor fazer o que os outros dizem do que descobrir, por conta própria, a melhor maneira de fazer qualquer coisa (Simon). Sem embargo, aponta Mosterín , os paralelismos entre a evolução biológica e a cultural não devem fazer-nos passar por alto algumas diferenças importantes. Dawkins por pôs os memes como contraponto cultural dos genes. Até que ponto são equiparáveis?. Enquanto conhecemos o mecanismo subyacente à informação genética (a dupla hélice de DNA e o código genético), ignoramos o mecanismo cerebral que subjaz aos memes. Os genes se replicam diretamente, sem passar por efeitos fenotípicos. Cada gen, considerado como seqüência de DNA, produz por duplicação dois genes idênticos. Os memes, pelo contrário, somente podem replicar-se através da mediação de seus efeitos fenotípicos (preferências linguísticas, textos escritos, gestos, conduta observada, etc.), que, eventualmente, podem chegar a provocar o surgimento de um meme similar no ouvinte, observador ou receptor. No mundo biológico os câmbios meramente fenotípicos não se transmitem geneticamente e em geral se perdem. Não obstante, os conteúdos culturais ( que desde um ponto de vista biológico são parte do fenótipo estendido) sim se transmitem, ainda que não geneticamente, senão por aprendizagem social. Os câmbios genéticos são aleatórios, ocorrem ao azar, em ausência de qualquer intencionalidade. Sem embargo, os câmbios culturais com frequência (ainda que nem sempre) respondem a um desenho intencional de seus inventores ou introdutores. Os indivíduos portadores de genes e de memes podem cambiar de memes, mas não de genes. Uma espécie somente se extingue pela morte de todos os seus membros. Sem embargo, uma cultura grupal, o mesmo que uma moda, pode desaparecer ou passar sem que faleçam seus portadores. As espécies biológicas são como tubos no espaço-tempo pelos quais viajam os genes. Os tubos são completamente estancos e impermeáveis (excetuando os fenômenos marginais de hibridização). Pelo contrário, as culturas dos grupos sociais não estão isoladas, senão que são permeáveis. O fenômeno da convergência cultural, pelo qual os diversos grupos sociais compartem cada vez mais memes, carece de paralelismo na evolução biológica. Grupos culturais distintos podem intercambiar memes, mas espécies distintas não podem intercambiar genes ( se pudessem, não seriam espécies distintas). A atual convergência cultural universal, também chamada “globalização”, carece de contrapartida alguma na evolução biológica. Em qualquer caso, a evolução cultural , como a biológica, é um fenômeno histórico, dependente de mil contingências imprevisíveis. E não podemos predizê-la com nenhum grau de precisão nem segurança. Para uma análise dos possíveis usos no direito do meme de modo similar ao do gen, cfr. : Stake e Fried.

[7] E é o cérebro que oferece o cenário deste drama em que se representam os valores culturais, os juízos morais e as peripécias de nossa existência. Nele percebemos o mundo através da lente das emoções (de nossas idéias e de nosso pensamento).Estas são as verdadeiras portadoras de sentido até o ponto de constituir uma verdadeira linguagem que permite ao sujeito dialogar não somente com o outro, senão também consigo mesmo. As emoções constituem, assim, um repertório inato de signos mediante os quais se estabelece a comunicação entre os indivíduos , o reparto da subjetividade, e que , em igual medida, permitem atribuir ao outro um estado mental e compartir com ele uma representação. Sobre a importância do cérebro como a fronteira definitiva para entendimento da vida emocional do ser humano a partir do estudo científico dos correlatos neuronais subjacentes responsáveis pelos mecanismos e funcionamento das emoções (isto é, do fundamento neurológico da emoção do ponto de vista evolutivo e registrado pelo cérebro), e considerando estas (as emoções) como funções biológicas do sistema nervoso ou uma função do cérebro , cfr. LeDoux.

[8]A característica da cultura humana que a torna tão central na vida humana é o seu potencial acumulativo: os seres humanos modernos desenvolveram a capacidade de “identificar-se” (de ver os “outros”) como membros de sua própria espécie, conduzindo a um entendimento recíproco como seres intencionais; esta nova classe de entendimento social favoreceu o aparecimento de novas formas simbólicas de interação social que, por sua vez, conduziu à produção gradual de novos artefatos culturais cada vez mais complexos, acumulando modificações ao longo do tempo histórico e em um grau que não é encontrado em outra espécie. Nas palavras de Edgar Morin: a cultura, que não está assimilada de forma hereditária, aparece e se transmite por aprendizagem. A cultura não somente nasce no marco de um processo natural senão que adquire uma relativa autonomia, o que vai a propiciar o desenvolvimento da humanidade: já na última etapa, a do Homo sapiens, havia um acervo cultural propício para a eclosão de um grande cérebro, esse grande cérebro que supera desde qualquer ponto de vista ao do Homo erectus. Se a cultura é o resultado de uma evolução natural, o último estágio desta evolução não podia dar-se sem que existisse a cultura. Já não falamos simplesmente de corte epistemológico senão também de soldadura ontológica. Significa dizer que inclusive o ato de filosofar não pode perder de vista sua origem animal, e que aí, nessa simbiose, reside o característico da “natureza humana” (o próprio “tempo”, que durante um largo período se acreditou ser uma noção filosófica agora descobrimos que talvez seja um conceito biológico; os neurobiólogos nos explicam que quando se produz um corte do lóbulo pré-frontal ou uma alteração dos tubérculos mamilares, os sujeitos passam a perceber somente o presente, vivem em uma sucessão de presentes: deixa de haver, nessas zonas cerebrais, conexões com a memória e possibilidade de antecipação) . A mente se inscreve no cérebro, que é o mais sofisticado órgão animal. Nenhuma construção cultural pode desconectar-se de sua raiz, e esta raiz é tão “espiritual” como “material”, tão cultural como animal.

[9] Nas palavras de Jones e Goldsmith : “Society uses law to encourage people to behave differenntly than they would behave in the abssence of law. This fundamental purpose makes law highly dependent on sound understanding of the multiple causes of human behaviour. The better those understanding, the better law can achieve social goals with legal tools. Current understanding though clearly improving, are imperfect in a variety of ways. One imperfection accompanies the prevalent, often unexamined assumption that law can gain accurate and sufficient understanding of human behaviour by using only the tools of the social sciences, the humanities, or both. Every day we leave further behind a world in which tha assumption was excusable. Knowledge in behavioral biology is growing rapidly, and is has laid a significant foundation for understanding how the brain works and how it came to work as it does. It affords a deeper understanding of what behavior is, where it comes from, what evolutionary and developemental causes underlie species-typical brains, what influences yield species-typical patterns of behavior, how the brain develops at the temporal intersection of genes and environments, how the brais functions, and how evolutionary biology and culture inevitably intertwine, reciprocally affecting one another. To be clear, we have not suggested that behavioral biology deserves a place at the head of the table. Nor are we claiming that it will solve every problem. We have argued, instead, that trying to understand behavior at any deep level, while simultaneously ignoring an enormous and growing store of relevant scientific information, is a path to certain obsolescence. We have argued that building more accurate and more robust models of human behaviour that can improve law´s effectiveness requires integrating traditional perspectives with perspectives from behavioral biology. And we have argued that this is an interdisciplinary enterprise in which legal thinkers should participate.[…] In doing so, behavioral biology promises to help discover useful patterns in regulable behavior, uncover policy conflicts, sharpen cost-benefit analyses, clarify causal links, increase understanding about people, provide theoretical foundation and potential predictive power, disentangle multiple causas influences, expose unwarranted assumptions, assess comparative effectiveness of legal strategies, reveal deep patterns in legal architecture, identify selection pressures that law creates, and also usefully highlight legal features through evolutionary metaphors. Any one of these functions, standing alone, could justify greater attention to behavioral biology. Taken together, they make a geometrically stronger case”.

[10] Significa dizer, em síntese, que, porque o direito não surgiu do “nada” e nem parece ser um artefato inescrutável de origem desconhecida , mas antes o resultado de um processo causal originado e motivado pelo comportamento moral (isto é, de que surgiu de uma base moral comum que todos possuímos e que, sem embargo, se configura mais como uma interpretação construída a partir das realidades culturais do entorno imediato), já não há nenhuma razão sensata para não aceitar a postura teórica adotada por Alexy acerca do conceito e da natureza não positivista do direito, no sentido de que existe uma vinculação ou conexão necessária (ou conceitual) entre o direito e a moral ou a justiça ( entre o direito que “é” e o direito que “deve ser”) , que se torna visível mediante a inclusão, a delimitação e a fundamentação do direito a partir de elementos morais: o conceito de direito há de incluir ou incorporar necessariamente a idéia de justiça (ou de correção material ou de moral), entendida como correção em relação com a distribuição e a compensação. Observe-se que, para Alexy , a pretensão de correção não é uma pretensão especificamente jurídica: está enraizada em todo tipo de raciocínio, e na medida em que raciocinar, isto é, afirmar, debater e perguntar, é um componente necessário da forma humana de vida, se funda (está ínsita) na natureza humana.

[11] Para dizê-lo de outra maneira, entendemos que o direito não é mais nem menos que uma estratégia sócio-adaptativa – cada vez mais complexa, mas sempre notavelmente deficiente – empregada para articular argumentativamente – de fato, nem sempre com justiça –, por meio de atos que são qualificados como “valiosos”, os vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os humanos construímos sistemas aprovados de interação e estrutura social. Um artefato cultural que deve ser manipulado para desenhar um modelo normativo e institucional que evite, em um entorno social prenhado de assimetrias e desigualdades, a dominação e a interferência arbitrária recíprocas, garantindo uma certa igualdade material e, em último termo, estimulando e assegurando a titularidade e o exercício de direitos (e o cumprimento de deveres) de todo ponto inalienáveis e que habilitam publicamente a existência dos cidadãos como indivíduos plenamente livres.

 [12] Tanto temos instintos sinistros como instintos luminosos : os seres humanos têm alguns instintos que fomentam a virtude e o bem comum e outros que favorecem o comportamento egoísta e anti-social. Precisamos planejar uma sociedade que estimule aqueles e desencoraje estes (Ridley), isto é, nas palavras de Sandel : na presença de indivíduos dotados de certas qualidades de caráter, de certas disposições morais que os levam a identificar com a sorte dos demais e, em definitiva, com os destinos de sua comunidade, o melhor será deixar de lado a idéia liberal do Estado neutral, para substituí-la por um Estado ativo em matéria moral, e decidido a “cultivar a virtude” entre seus cidadãos.

[13] Tentando definir o que significa “ser de esquerda”, assim se manifesta Peter Singer : “Tomar consciência da imensa quantidade de dor e sofrimento que há em nosso universo, assim como do desejo de fazer algo para reduzi-la (...) isso, creio eu, consiste a esquerda (...) – ou seja – é essencial para qualquer esquerda autêntica. Se nos encolhemos de ombros ante o sofrimento evitável dos débeis e dos pobres, dos que estão sendo explorados e despojados, ou dos que simplesmente não têm nada para levar uma vida decente, não formamos parte da esquerda. Se dizemos que o mundo sempre foi e será assim, pelo que não se pode fazer nada, então não formamos parte da esquerda. A esquerda (ao seguir o imperativo de reduzir o sofrimento) quer fazer algo por cambiar esta situação”.

 

 


 

 Ó Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular da Unama/PA;Professor Colaborador (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).

E-mail: atahualpaf@yahoo.es

 


 

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