Revista Jurídica Cajamarca | |||
A perícia em casos de torturaGenival Veloso de França (*)
|
Resumo:
O autor além de conceituar a
tortura à luz da legislação brasileira vigente, fala da violência
institucional no Brasil, chama a atenção quanto ao vínculo dos IMLs com
os órgãos de segurança, faz
uma série de recomendações quando do exame das vítimas de alegada
tortura, chamando a atenção para o exame clínico e as necropsias em
casos de morte por maus tratos ou outras formas cruéis, desumanas ou
degradantes de tratamento ou punição. Descritores:
Métodos
avaliativos de maus tratos; avaliação de meios cruéis ou degradantes;
perícias de maus tratos ou punições. Preliminares Toda
e qualquer ação que tenha como destino as pessoas e o seu modo de viver,
implica necessariamente no reconhecimento de certos valores. Qualquer que
seja a maneira de abordar esta questão vamos chegar a um entendimento que
o mais significativo desses valores é sempre o próprio ser humano, no
conjunto de seus atributos materiais, físicos e morais. Se não for
assim, cada um de nós nada mais representa senão um simples objeto, sem
identidade e sem nenhum destino. 1.
A vida humana como valor ético. O valor da vida é de tal magnitude
que, até mesmo nos momentos mais graves, quando tudo parece perdido,
dadas as condições mais excepcionais e precárias – como nos conflitos
internacionais, na hora em que o direito da força se instala negando o próprio
Direito, e quando tudo é paradoxal e inconcebível -, ainda assim a intuição
humana tenta protegê-la contra a insânia coletiva, criando regras que
impeçam a prática de crueldades inúteis. Quando
a paz passa a ser apenas um instante entre dois tumultos, o homem tenta
encontrar nos céus do amanhã uma aurora de salvação. A ciência, de
forma desesperada, convoca os cientistas a se debruçarem sobre as
bancadas de seus laboratórios, na procura de meios salvadores da vida.
Nas mesas das conversações internacionais, mesmo entre intrigas e astúcias,
os líderes do mundo inteiro tentam se reencontrar com a mais irrecusável
de suas normas: o respeito pela vida humana. Assim,
no âmago de todos os valores está o mais indeclinável de todos eles: a
vida do homem. Sem ela, não existe a pessoa humana. Não existe a base de
sua identidade. Mesmo diante da proletária tragédia de cada homem e de
cada mulher, quase naufragados na luta desesperada pela sobrevivência do
dia a dia, ninguém abre mão dos seus direitos de sobrevivência. Essa
consciência é que faz a vida mais que um bem: um valor. A
partir dessa concepção, hoje, mais ainda, a vida passa a ser respeitada
e protegida não só como um bem afetivo ou patrimonial, mas pelo que ela
se reveste de valor ético. Não se constitui apenas de um meio de
continuidade biológica, mas de uma qualidade e de uma dignidade que faz
com que cada um realize seu destino de criatura humana. Sendo
a ética uma proposta em favor do bem-comum, não pode ela ser
desvinculada do conjunto das necessidades individuais e coletivas. Faz
parte de um sistema de forças que conduz o homem na luta pela liberdade e
pela justiça social. 2.
A vida humana como valor jurídico. Vivemos sob a égide de uma
Constituição que orienta o Estado no sentido da “dignidade da pessoa
humana”, tendo como normas a promoção do bem comum, a garantia da
integridade física e moral do cidadão e a proteção incondicional do
direito à vida. Tal proteção é de tal forma solene que o atentado a
essa integridade eleva-se à condição de ato de lesa-Humanidade: um
atentado contra todos os homens. Afirma-se
que a Constituição do Brasil protege a vida e que tudo aquilo que soa
diferente é contrário ao Direito e por isso não pode realizar-se.
Todavia, dizer que a vida depende da proteção da Carta Maior é
superfetação porque a vida está acima das normas e compõe todos os
artigos, parágrafos, incisos e alíneas de todas as Constituintes. Cada
dia que passa, a consciência atual, despertada e aturdida pela
insensibilidade e pela indiferença do mundo tecnicista, começa a se
reencontrar com a mais lógica de suas normas: a tutela da vida. Essa
consciência de que a vida humana necessita de uma imperiosa proteção
vai criando uma série de regras que vai se ajustando mais e mais com cada
agressão sofrida, não apenas no sentido de se criar dispositivos legais,
mas como maneira de estabelecer formas mais fraternas de convivência.
Este sim, seria o melhor caminho. Tudo
isso vai sedimentando uma idéia de que a vida de todo ser humano é
ornada de especial dignidade e que isto deve ser colocado de forma clara
em defesa da proteção das necessidades e da sobrevivência de cada um.
Esses direitos fundamentais e irrecusáveis da pessoa humana devem ser
definidos por um conjunto de normas possibilitando que cada um tenha condições
de desenvolver suas aptidões e suas possibilidades. 3.
A defesa da pessoa e da vida e os direitos humanos. O mais efetivo
marco em favor da defesa da pessoa humana e conseqüentemente da sua vida
vem da vitória da Revolução Francesa, com a edição da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, onde já no seu artigo
primeiro se lê: “todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em
direitos”. E no artigo 5º é mais enfática quando diz: “ninguém será
submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante”. Mesmo
que o mundo tenha assistido dois grandes conflitos internacionais neste século
e que algumas pessoas continuem mais e mais em busca de privilégios e
vantagens individuais, não se pode negar que algo vem sendo feito em
favor dos valores humanos. O que nos faz pensar assim é o crescimento de
uma significativa parcela da sociedade que já se conscientizou, de forma
isolada ou em grupos, que a defesa dos direitos humanos não é apenas
algo emblemático, mas um argumento muito forte em favor da sobrevivência
do homem. Isto não quer dizer que não haja por parte de alguns a alegação
de que a defesa dos direitos humanos seja um risco para a sociedade, uma
subversão da ordem pública, um jogo de interesses ideológicos ou uma
ameaça aos direitos patrimoniais. Outros, por ingenuidade ou má-fé,
admitem que a luta em favor dos direitos humanos é uma apologia ao crime
e um endosso ao criminoso. A
partir da edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela
Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em 1948, embora sem
eficácia jurídica, pode-se dizer que ela representa um momento
importante na história das liberdades humanas, não apenas pelo que ali
se lê em termos do ideal de uma convivência humana, mas pelas declaradas
adesões dos países membros desta Organização. Espera-se
que passo a passo a humanidade vá construindo um ideário onde fique
evidente a importância da valorização da pessoa e o reconhecimento
irrecusável dos direitos humanos. Não adianta todo esse encantamento com
o progresso da técnica e da ciência se não for em favor do homem. Se não,
esse progresso será uma coisa pobre e mesquinha. Violência
institucional no Brasil Os
aparelhos do poder organizado em nosso país que disciplinam as relações
sociais e que administram a repressão (polícia), que julgam e aplicam as
sanções (justiça) e que executam a punição (prisão) não deixam, de
certo modo, de exercer ou tolerar a violência. O Estado constitui-se sem
dúvida na mais grave forma de arbítrio porque ela flui de um órgão de
proteção e contra o qual dificilmente se tem remédio[1]. Parte
da estrutura policial tornou-se viciada pelo intolerância e pela corrupção,
imbuída de uma mentalidade repressiva, reacionária e preconceituosa, na
mais absoluta fidelidade que o Sistema lhe impôs desde os anos de repressão.
Hoje tal fração desta estrutura não somente perdeu a credibilidade da
população, como lhe causa medo. O
aparelho policial mostra-se cada vez mais violento a partir da organização
dos movimentos coletivos de reivindicação e protesto. Dessa forma, com o
surgimento mais constante desses movimentos populares, o poder passou a
prevenir e controlar de forma agressiva o que ele chamou de “desordens públicas”.
Esse aparelho de poder autorizado legalmente a usar a violência contra os
trabalhadores sem terra e sem emprego, deixando claro que a garantia da
“ordem social” tem suas razões ditadas pelas classes dominantes que
se sentem ameaçadas. Este modo de atuar do aparelho policial não deixa
de ser uma fonte permanente de conflitos, fazendo que essa corporação se
constitua numa forma de violência institucional. De
certa forma pode-se dizer que o aparelho judicial também constitui numa
modalidade de violência institucional, a partir do instante em que suas
decisões se inclinam obstinadamente para o lado do legalismo insensível,
deixando de agir pela equidade. Não é outro senão o próprio Presidente
do Supremo Tribunal Federal que diz: “necessitamos de um sistema que
seja processualmente célere, politicamente independente, socialmente
eficaz e tecnicamente eficiente” (Revista Veja, ano 32, n.º 12,
22/mar./1999, pag. 36). O
princípio da legalidade é o eixo da lógica da justiça criminal, mas se
olharmos para os presídios não é difícil entender que essa ideologia,
pelo menos na prática, favorece os interesses e as pessoas das classes
dominantes. Estes indivíduos, pertencentes a certa casta social, exageram
o limite da liberdade real, enquanto os outros, marginalizados pelo
processo de produção, estão submetidos às regras de sua categoria e,
por isso, têm suas liberdades condicionadas. Até porque as leis que são
seguidas fielmente pelo aparelho judicial são elaboradas a partir dos
interesses que os legisladores defendem e representam. E estes não têm
nenhuma intimidade com aspirações da população que mais necessita e
anseia por justiça. A
violência do aparelho carcerário é certamente a mais impiedosa e
humilhante porque o presidiário, principalmente o de crimes comuns,
representa para o poder e para uma fração da sociedade, uma escória. Não
passa pelos critérios dessas pessoas que a pena seja uma medida de
recuperação e de ressocialização, mas tão-só um instrumento de
vingança e de reparação. O próprio sentido de intimidação e de
excessivo rigor punitivo não deixa de constituir uma modalidade de
terrorismo oficial. A
forma como essas instituições são administradas e o perfil dos seus
administradores não deixam dúvidas do verdadeiro sentido dessas prisões.
Não é nenhuma novidade afirmar que essas casas de custódia funcionam
como desestímulo arrasador aos programas de recuperação. E é nesse
ambiente de trabalhos inúteis, de degradação e coação disciplinar, de
prática sistemática de torturas e maus tratos que o regime carcerário
propõe recuperar seus presos. Tudo
que existe de sórdido no sistema carcerário: a prepotência, a falta de
disciplina e a brutalidade gratuita de alguns agentes do poder e o seu
desdém pelas entidades que promovem a defesa e a proteção dos direitos
humanos, é com certeza a manifestação mais abjeta da intolerância, da
irreverência e do arbítrio. Esta “justiça paralela”, amparada pela
mesma inspiração de violência instituída, só serve para desmoralizar
a Justiça e aviltar a dignidade humana. Desvinculação
dos IMLs da área da Segurança Dentro
deste quadro, um dos fatos mais graves e desalentadores, tem sido a inserção
dos Institutos Médico-Legais nos organismos de repressão, quando deviam
estar entre aqueles que são os verdadeiros arautos na defesa dos direitos
humanos. Isso infelizmente pode comprometer os interesses mais legítimos
da sociedade. Muitos desses Institutos estão subordinados diretamente a
Delegados de Polícia. Por
isso, pela incidência quase generalizada da violência e do arbítrio dos
órgãos de repressão, sempre defendemos a idéia da imediata desvinculação
dos Institutos de Medicina Legal da área de Segurança, não só pela
possibilidade de se estabelecer pressões, mas pela oportunidade de se
levantar dúvidas na credibilidade do ato pericial. A polícia que prende,
espanca e mata é a mesma que conduz o processo[2]. Como
sempre, mas hoje muito mais, os órgãos de perícia são de importância
significativa
na prevenção, repressão e reparação dos delitos, porque a
prova técnico-científica prevalece, diz o bom-senso, sobre as demais
provas ditas racionais, notadamente nas questões criminais. Por
isso a Medicina Legal não pode deixar de ser vista como um núcleo de ciência
a serviço da Justiça, e o médico nestas condições é sempre um
analista do Juiz, e não um preposto da autoridade policial. Desse modo,
sente-se a necessidade cada vez mais premente de transformar esses
Institutos em órgãos auxiliares do Poder Judiciário, e sempre com a
denominação de Institutos Médico-Legais, como a tradição os consagrou
pelo seu mais alto destino. Atualmente há uma tendência da tecnocracia
estatal chamar esses departamentos de Institutos de Polícia Científica
ou de Polícia Técnica. Nem se pode admitir Polícia como ciência nem
Medicina Legal como polícia. Lamentavelmente,
por distorção de origem, quando as repartições médico-legais nada
mais representavam senão simples apêndices das Centrais de Polícia e os
legistas meros auxiliares subordinados à autoridade policial, permanece o
desagradável engano, ficando até hoje a idéia entre muitos que a
legisperícia é parte integrante e inerente da atividade policial. E o
mais grave: isso fez que se criasse, num bom número de legistas
brasileiros, uma postura nitidamente policialesca que se satisfaz com a
exibição de carteiras de polícia ou de portes de arma. A
Medicina Legal tem outra missão, mais ampla e mais decisiva dentro da
esfera do judiciário, no sentido de estabelecer a verdade dos fatos, na
mais justa aspiração do direito. Foi
com esse pensamento que a Comissão de Estudos do Crime e da Violência,
criada pelo Ministério da Justiça, propôs ao Governo a desvinculação
dos Institutos Médico-Legais e da própria Perícia Criminal, dos órgãos
de polícia repressiva. O objetivo era "evitar a imagem do
comprometimento sempre presente, quando, por interesse da Justiça, são
convocados para participar de investigações sobre autoria de crimes
atribuídos à Polícia". A
solução apresentada pela Comissão, tendo como presidente o Professor
Viana de Moraes, era “que estes serviços técnicos hoje sujeitos à
Secretaria de Segurança Pública, passem a integrar o quadro
administrativo das Secretarias de Justiça”. Pessoalmente acho que pouco
mudaria se os órgãos de perícias fossem para tais Secretarias, ou mesmo
para o Ministério da Justiça. O local mais adequado seria o Ministério
Público Estadual, a quem constitucionalmente cabe o ônus da produção
da prova. Ou como as Coordenadorias de Perícias, adotadas pelos Estados
do Pará e Amapá, autônomas e ligadas diretamente ao Gabinete do
Governador. A
justificativa era baseada em trabalhos do juiz João de Deus Mena Barreto
e do criminalista Serrano Neves, documentados por vários crimes atribuídos
aos policiais, onde os laudos elaborados por peritos oficiais subordinados
às Secretarias de Segurança, segundo aqueles autores contestavam e
negavam a autoria, entre eles o da morte do operário Aézio da Silva
Fonseca, servente do Itanhangá Golf Clube do Rio de Janeiro e do operário
Manoel Fiel Filho, este último dado como suicida por estrangulamento, o
que teoricamente e naquelas circunstâncias era inaceitável. Ninguém
de bom-senso pode assegurar que dessa vinculação possa existir sempre
qualquer forma de coação. Mas, dificilmente se poderia deixar de aceitar
a idéia de que em algumas ocasiões possa existir pressão, quando se
sabe que os órgãos de repressão no Brasil estiveram ou estão
seriamente envolvidos no arbítrio e na violência. Pelo menos, suprimiria
esse grave fator de suspeição, criado pela dependência e pela subordinação
funcional. Enquanto
o aparelho policial permanecer vinculado a esses lamentáveis episódios,
e os cargos de direção das repartições médico-legais forem distribuídos
entre indivíduos da confiança e da intimidade do partido oficial, haverá,
pelo menos, dúvidas em alguns resultados. Tortura A
Lei n.º 9.455, de 7 de abril de 1997, que regulamenta o inciso XLIII do
artigo 5º da Constituição do Brasil de 1988, define tortura como o
sofrimento físico ou mental causado a alguém com emprego de violência
ou grave ameaça, com o fim de obter informação, declaração ou confissão
de vítima ou de terceira pessoa, outrossim, para provocar ação ou omissão
de natureza criminosa ou então em razão de discriminação racial ou
religiosa[3].
Por sua vez, a Declaração de Tóquio, aprovada pela Assembléia Geral da
Associação Médica Mundial, em 10 de outubro de 1975, define como: “a
imposição deliberada, sistemática e desconsiderada de sofrimento físico
ou mental por parte de uma ou mais pessoas, atuando por própria conta ou
seguindo ordens de qualquer tipo de poder, com o fim de forçar uma outra
pessoa a dar informações, confessar, ou por outra razão qualquer”. A
Convenção da Organização das Nações Unidas contra a Tortura a define
como “um ato pelo qual são infligidos, intencionalmente, a uma pessoa,
dores ou sofrimentos graves, sejam eles físicos ou mentais, com o fim de
obter informações ou uma confissão, de castigá-la por um ato cometido
ou que se suspeita que tenha cometido, de intimidá-la ou coagi-la, ou por
qualquer razão baseada em qualquer tipo de discriminação”. A
Convenção Interamericana para Prevenir e Sancionar a Tortura dá definição
mais avançada que esta da Convenção da ONU quando define a tortura como
“a aplicação, em uma pessoa, de métodos que tendem a anular a
personalidade da vítima ou diminuir sua capacidade física ou mental,
embora não causem dor física ou angústia psíquica”. A
verdade é que o fato de o ser humano sofrer de forma deliberada de
tratamento desumano, degradante e cruel, com a finalidade de produzir
sofrimentos físicos ou morais, é tão antigo quando a história da própria
Humanidade. Houve uma época, não tão distante, que a Igreja e o Estado
usavam a tortura como formas legais de expiação de culpa ou como forma
legal de pena. A Inquisição e a Doutrina de Segurança Nacional não são
diferentes em seus métodos, princípios e objetivos. Na
atualidade, malgrado um ou outro esforço, muitos são os países que
ainda praticam, ou toleram a tortura em pessoas indefesas, sem nenhuma
justificativa ou qualquer fundamento de ordem normativa. Muitas dessas práticas
têm por finalidade punir tendências ideológicas ou reprovar e inibir os
movimentos libertários ou as manifestações políticas de protesto.
Muitas dessas práticas cruéis e degradantes nada têm que ver com a
chamada “obtenção da verdade”, mas uma estratégia do sistema
repressivo que dispõe o Estado, contra os direitos e as liberdades dos
seus opositores, como estratégia de manutenção no poder. Não
é por outra razão que sua metodologia e seus princípios estão nos currículos,
como matéria teórica e prática das corporações militares e policiais.
Não quer dizer que não exista também a banalização do instinto
violento como maneira torpe de dobrar o espírito das pessoas para o
torturado admitir o que quer o torturador. No fundo mesmo o que se procura
com a tortura é o sofrimento corporal insuportável, levando a uma
fragmentação do corpo e da mente. Tais
procedimentos, por razões muito óbvias, são desconhecidas na maioria
das vezes, pois sua divulgação, mesmo em países ditos democráticos, é
evitada de maneira disfarçada, e assim os organismos internacionais que
cuidam dos direitos humanos não têm informações nem acesso aos
torturados. Por outro lado, as próprias autoridades locais do setor de saúde
não incluem essas vítimas dentro de um programa capaz de resgatá-las de
suas graves seqüelas. Recomendações
em perícias de casos de tortura 1
– valorizar o exame esquelético-tegumentar. 2
– descrever detalhadamente a sede e as características dos ferimentos. 3
– registrar em esquemas corporais todas as lesões encontradas. 4
– fotografar as lesões e alterações existentes nos exames interno e
externo. 5
– detalhar em todas as lesões, independente do seu vulto, a forma,
idade, dimensões, localização e particularidades. 6
– radiografar, quando possível, todos os segmentos e regiões agredidos
ou suspeitos de
violência. 7
– examinar a vítima de tortura sem a presença dos agentes do poder. 8
– trabalhar sempre em equipe. 9
– examinar à luz do dia. 10
– usar os meios subsidiários disponíveis. Exame
clínico em casos de tortura Toda
avaliação pericial com fins legais, diante de casos de suspeita de
tortura deve ser realizada de forma clara e imparcial, com base nos
fundamentos médico-legais e na experiência profissional do perito. O
ideal seria que essas perícias fossem feitas não apenas por
profissionais imparciais, mas também por pessoas que tenham treinamento nestes
tipos de exames, sabendo utilizar-se dos meios semiológicos pertinentes,
dos meios complementares específicos a cada caso e dos meios ilustrativos
disponíveis. O
exame deve ser feito num clima de confiança, com paciência e cortesia.
Entender que as vítimas de tortura, na maioria das vezes, mostram-se
arredios, desconfiados e abalados, em face das situações vergonhosas e
humilhantes que tenham passado. Deve-se
manter sigilo das confidências relatadas e somente divulgá-las com o
consentimento da vítima. Examiná-la com privacidade, jamais na presença
de outras pessoas, principalmente de indivíduos que possam ser responsáveis
ou coniventes com os
maus tratos. Desaconselha-se até a presença da família[4]. O
perito deve ter o consentimento livre e esclarecido do examinado sobre
fins e objetivos do exame e este tem o direito de recusar ser examinado ou
limitar o exame. Por outro lado, as vítimas podem escolher o perito ou
podem optar pelo sexo masculino ou feminino do examinador. Em casos de
estrangeiros tem também o direito de escolher seu intérprete. Histórico:
O histórico deve ser completo e detalhado, incluindo informações de
doenças pregressas e traumas anteriores à detenção ou maus tratos.
Todas as informações sobre traumas atuais e antigos são importantes, não
apenas no que se refere a sua existência mas ainda as suas práticas e métodos,
pois isto pode contribuir para futuras observações. Exame
físico: Além do
exame das vestes deve-se proceder ao exame físico detalhado, utilizando
como meio de ilustração fotografias e esquemas em diagramas do corpo
humano. A
face deve examinada para avaliar se há fraturas, assim como seus
componentes motores e sensoriais, inclusive com o uso dos Raios X.
Diversas são as modalidades de lesões dos olhos, desde a equimose
conjuntival até a cegueira. Os ouvidos não podem passar sem reparo pois
é comum uso do “telefone” pelos torturadores,
que consiste num trauma duplo com as mãos em forma de concha em
ambos pavilhões auriculares, ocorrendo daí roturas de tímpano e perda
de audição. O nariz deve ser visto quanto seu alinhamento e ao desvio de
septo nasal, como forma de diagnosticar possíveis fraturas. Exame da mandíbula
na procura de fratura ou deslocamento. O mesmo se diga quanto à cavidade
oral e dentes, tendo em conta que em prisões não é raro os traumas
diretos ou as tortura por choque elétrico produzirem fraturas dentárias
ou quebra de próteses. O
exame do tórax e do abdome deve merecer o mesmo cuidado considerando as
lesões cutâneas, luxações e fraturas ósseas, assim como sintomas
digestivos e respiratórios pós-trauma[5]. O
aparelho gênito-urinário é sede constante de traumas em torturas e seu
exame só deve ser feito com a permissão do examinado. O exame genital em
mulheres em casos de estupro ou de introdução de corpos estranhos. No
caso de estupro recente pode-se dar o diagnóstico através do exame do sêmen,
inclusive com a possibilidade de utilizar o exame em DNA para identificar
o autor. Pode ser feito ao diagnóstico da conjunção carnal através da
presença da dosagem alta de fosfatase ácida e da glicoproteina P30 na
secreção vaginal da vítima. No caso da penetração de objetos o que
chama a atenção é a intensidade das lesões locais como escoriações,
equimoses, hematomas e ferimentos não apenas no canal vaginal, mas também
nos grandes lábios, fúrcula e períneo. A perícia pode identificar vestígios
do material componente do corpo estranho usado na penetração. O exame
genital em homens pode detectar edema, equimoses e ferimentos de pênis e
testículos, hidrocele e hematocele, torção testicular e a não menos
comum que é a marca elétrica[6]. O
exame da região anal também deve ser feito, com a permissão do
examinado, principalmente quando há queixa de introdução de objetos, o
que pode revelar sangramento, fissuras, lacerações, corrimento purulento[7]. Uma
forma de trauma comum em torturas é a chamada “falanga” que se
constitui em agressões repetidas nos pés ou nas mãos, geralmente por
barras de ferro, cassetetes ou bastões, capaz de produzir sérios danos,
entre os quais a necrose muscular e obstrução de vasos seguida de
gangrena na parte distal dos dedos. Ou então produzir deformidades
permanentes dos pés, com claudicação da marcha[8].
Pode ocasionar as seguintes complicações: 1 - Síndrome de compartimento
fechado (edema num compartimento fechado causando obstrução vascular e
necrose muscular, que podem resultar em fibrose, contratura ou gangrena
na porção distal do pé ou dos dedos); 2 - Esmagamento do
calcanhar e da parte anterior da plataforma do pé (partes do calcanhar e
das falanges proximais são
esmagadas durante a “falanga”);
3 - Cicatrizes
rígidas e irregulares envolvendo a pele e os tecidos subcutâneos (a
aponeurose plantar é parcial ou completamente destruídas devido ao
edema); 4 - Ruptura
da aponeurose plantar e dos tendões do pé (a função de sustentação
do arco do pé desaparece): 5 - Fasciíte plantar (inflamação da
aponeurose)[9]. Além
das múltiplas lesões traumáticas possíveis de serem detectadas no
exame clínico do torturado, existe uma série de perturbações psíquicas
que devem ser registradas com certo cuidado, pois elas podem ser
confundidas com sintomas de outras manifestações. Uma
das experiências humanas mais dolorosas é a oriunda da tortura,
motivadora de uma grande variedade de danos psicossomáticos,
comportamentais e emocionais. Destarte, faz-se necessário que a perícia
tenha a devida sutileza de registrar todas essas desordens. Essas
perturbações psíquicas, conhecidas como “Desordem de estresse pós-traumático”[10]
ou “Síndrome pós-tortura”, são caracterizadas por transtornos
mentais e de conduta, apresentando desordens
psicossomáticas (cefaléia, pesadelos, insônia, tremores, desmaios,
sudorese e diarréia), desordens
afetivas (depressão, ansiedade, medos e fobias) e desordens
comportamentais (isolamento, irritabilidade, impulsividade, disfunções
sexuais e tentativas de suicídio). O mais grave desta síndrome é a
permanente recordação das torturas, os pesadelos e a recusa fóbica de
estímulos que possam trazer a lembrança dos maus tratos praticados. Com
esta riqueza de detalhes que a síndrome
pós-tortura encerra não será difícil para a perícia fazer um
levantamento completo de toda a sua sintomatologia e de suas seqüelas físicas
e psíquicas, e relacioná-las com os meios degradantes e desumano
causadores, principalmente quando isto é visto em prisioneiros políticos
ou de delitos comuns Necropsia
em morte por tortura Todas
as mortes ocorridas em presídios, notadamente de indivíduos que
faleceram sem assistência médica, no curso de um processo clínico de
evolução atípica ou de morte súbita ou inesperada, devem ser
consideradas a priori como
“mortes suspeitas”. Com certeza essas mortes, especialmente quando súbitas,
são as de maior complexidade na determinação da causa e do mecanismo da
morte. Quando
da perícia em casos de morte súbita, onde se evidenciam lesões orgânicas
significativas e incompatibilidade com a continuidade da vida, além da
ausência de lesões ou alterações produzidas por ação externa, não há
o que duvidar de morte natural, melhor chamada de “morte com
antecedentes patológicos” ou de “morte orgânica natural”. No
entanto, se são diagnosticadas lesões orgânicas mas se essas alterações
morfopatológicas não se mostram totalmente suficiente para explicar a
morte, então com certeza estamos diante da situação mais complexa e difícil
da perícia médico-legal, ainda mais quando não existe qualquer
manifestação exógena que se possa atribuir como causa do óbito. Pode
excepcionalmente ocorrer uma situação em que o indivíduo é vítima de
morte súbita, não tem registro de antecedentes patológicos, nem lesões
orgânicas evidentes na necropsia, além, de não apresentar manifestações
de agressão violenta, registrada por aquilo que se chamou de “necropsia
branca”. Desde que se afaste definitivamente a causa violenta de morte,
tenha-se tomado os cuidados necessários nas pesquisas toxicológicas e anátomo-patológica,
não há o que fugir da morte por causa indeterminada. Ainda mais se
existem os fatores não violentos de inibição sobre regiões reflexógenas,
predisposição constitucional e estados psíquicos inibidores. Como
última hipótese àquelas situações de morte inesperada, estão as que
se evidenciam lesões e alterações típicas que justificam a morte
violenta. No
primeiro caso, quando da chamada “morte súbita lesional”, onde o óbito
é diagnosticado e explicado de forma segura pela presença de
antecedentes patológicos, isso deve ficar confirmado de maneira clara,
pois dificilmente tal evento deixa de apresentar alguns constrangimentos
pelas insinuações de dúvida e desconfiança. As
causas das chamadas mortes naturais mais comuns são: cárdio-circulatórias
(cardiopatias isquêmicas, alterações valvulares, cardiomiopatias,
miocardites, endocardites, alterações congênitas, anomalias no sistema
de condução, roturas de aneurismas, etc.), respiratórias
(broncopneumonias, tuberculose, pneumoconioses, etc.), digestivas
(processos hemorrágicos, enfarte intestinal, pancreatite, cirrose, etc.),
urogenitais (afecções renais, lesões decorrentes da gravidez e do
parto); encefalomeníngeas (processos hemorrágicos, tromboembólicos e
infecciosos), endócrinas (diabetes), obstétricas (aborto, gravidez ectópica,
infecção puerperal, etc.), entre outras. Nas
situações de morte súbita sem registro de antecedentes patológicos,
com alterações orgânicas de menor importância e ausência de manifestações
violentas, o caso é ainda mais complexo e pode ser explicada como
“morte súbita funcional com base patológica”. Exemplo: arritmia cardíaca.
Quando isso ocorrer, é importante que se examine cuidadosamente o local
dos fatos, se analise as informações do serviço médico do presídio ou
do médico assistente e se use os meios subsidiários mais adequados a
cada caso, com destaque para o exame toxicológico. Mais
cuidado ainda se deve ter quando não existe qualquer alteração orgânica
que justifique a morte, nem se encontram manifestações de ação
violenta, mas o indivíduo é portador de alguma perturbação funcional.
Em alguns casos pode-se justificar como “morte súbita funcional”.
Exemplo: a morte pós-crise convulsiva. Nesses casos devem-se usar de
todos os meios complementares disponíveis no sentido de afastar a morte
violenta e, se possível, confirmar a morte natural a partir da confirmação
daquelas perturbações. Por
fim, os casos de morte violenta cuja perícia não deve apenas se
restringir ao diagnóstico da causa da morte e da ação ou do meio
causador, mas também ao estudo do mecanismo e das circunstâncias em que
esse óbito ocorreu, no sentido de se determinar sua causa jurídica Recomenda-se
que em tais situações a necropsia seja realizada de forma completa, metódica,
sem pressa, sistemática e ilustrativa, com a anotação de todos os dados
e com a participação de no mínimo outro legista. Além disso, devem-se
usar fotografias, gráficos e esquemas, assim como os exames
complementares necessários. A.
Exame externo do cadáver. Nos casos de morte violenta, em geral, o
exame externo tem muita importância não só para o desfecho do diagnóstico
da causa da morte, como também para se considerar seu mecanismo, sua
etiologia jurídica e as circunstâncias que antecederam o óbito. Essa é
a regra, embora possa em determinada situação soar diferente. Nas mortes
em que se evidencia tortura, sevícias ou outros meios degradantes,
desumanos ou cruéis, os achados analisados no hábito externo do cadáver
são de muita relevância. Os elementos mais significativos nessa inspeção
são: A.1
–Sinais relativos à identificação do morto. Todos os elementos
antropológicos e antropométricos,
como estigmas pessoais e profissionais, estatura, malformações congênitas
e adquiridas, além da descrição de cicatrizes, tatuagens e das vestes,
assim como a coleta de impressões digitais e de sangue, registro da
presença, alteração e ausência dos dentes e do estudo fotográfico. A.2
– Sinais relativos às condições do estado de nutrição, conservação
e da compleição física. Tal cuidado tem o sentido não só de
determinar as condições de maus tratos por falta de higiene corporal,
mas ainda de constatar sinais de desidratação e desnutrição. Essas
manifestações encontradas no detento podem confirmar a privação de água
e alimentos. A.3
– Sinais relativos aos fenômenos cadavéricos. Devem ser anotados
todos os fenômenos cadavéricos abióticos consecutivos e
transformativos, como rigidez cadavérica, livores hipostáticos,
temperatura retal e as manifestações imediatas ou tardias da putrefação. A.4
- Sinais relativos ao tempo aproximado de morte. Todos os sinais
acima referidos devem ser registrados num contexto que possam orientar a
perícia para uma avaliação do tempo aproximado de morte, pois tal
interesse pode resultar de muita utilidade quando diante de determinadas
circunstâncias onde se verificou a morte.
A.6
– Sinais relativos à causa da morte. Mesmo que se considere ser o
diagnóstico da causa da morte o resultado do estudo externo e interno da
necropsia, podemos afirmar que no caso das mortes por tortura o exame
externo do cadáver apresenta um significado especial pela evidência das
lesões sofridas de forma violenta. Assim, devemos considerar: A.6.1
– Lesões traumáticas. O exame deve ser procedido em toda superfície
do corpo, pois é muito importante que as lesões esquelético-tegumentares,
que são as mais freqüentes e mais visíveis, sejam valorizadas e
descritas de forma correta, pois na maioria das vezes, em casos dessa espécie,
elas contribuem de forma eloqüente para o diagnóstico da morte e as
circunstâncias em que ela ocorreu [11]. No
estudo das lesões externas do cadáver em casos de morte por tortura
devem-se valorizar as seguintes características: multiplicidade,
diversidade, diversidade de idade, forma, natureza etiológica, falta de
cuidados e local de predileção[12].
Quanto
a sua natureza, as lesões podem se apresentar com as seguintes características:
a)
Equimoses e
hematomas são as lesões mais comuns, localizando-se mais comumente na
face, tronco, extremidades e bolsa escrotal, apresentando processos
evolutivos de cronologia diferente, pelas as agressões repetidas em épocas
diversas; b)
Escoriações
generalizadas, também de idades diferentes, mais encontradas na face, nos
cotovelos, joelhos, tornozelos e demais partes proeminentes do corpo; c)
Edemas por
constrição nos punhos e tornozelos, por compressão vascular, em face da
ectasia sangüínea e linfática; d)
Feridas, na
maioria contusas, nas diversas regiões, com predileção pelo rosto
(supercílios e lábios)¸ também de evolução distinta pelas épocas
diferentes de sua produção, e quase sempre infectadas pela falta de
higiene e assistência; e)
Queimaduras,
principalmente de cigarros acesos no dorso, no tórax e no ventre,
recentes ou em forma de cicatrizes, ovais ou circulares, ou outras formas
de queimaduras, as quais quando bilaterais têm maior evidência de mau
trato, sendo quase sempre infectadas pela falta de cuidados. As lesões
produzidas por substâncias cáusticas são muito raras devido ao seu
aspecto denunciador; f)
Fraturas dos
ossos próprios do nariz que, após sucessivos traumas, podem produzir o
chamado “nariz de boxeador”, quase sempre acompanhado de fratura do
tabique nasal, com hematoma bilateral ao nível do espaço subcondral, além
das fraturas de costelas e de alguns ossos longos das extremidades, sendo
mais rara a fratura dos ossos da mão, dos pés, coluna e pélvis. É
importante determinar a data de cada fratura; g)
Alopécias com
zonas hemorrágicas difusas do couro cabeludo pelo arrancamento de tufos
de cabelo; h)
Edemas e
ferimentos das regiões palmares e fraturas dos dedos pelo uso de palmatória; i)
Lesões
oculares que vão desde as retinopatias e cristalinopatias até as roturas
oculares com esvaziamento do humor vítreo; j)
Lesões otológicas
como rotura dos tímpanos e otorragia provocadas por uma agressão de nome
“telefone”; k)
Fraturas e
avulsões dentárias por traumatismos faciais; l)
Sinais de abuso
sexual de outros presidiários como manobra de tortura e humilhação da
própria administração carcerária; m)
Lesões
eletroespecíficas produzidas pela eletricidade industrial, como técnica
de tortura utilizada para obtenção de confissões, sempre em regiões ou
órgãos sensíveis, como os genitais, o reto e a boca; ou pelo uso de uma
cadeira com assento de zinco ou alumínio conhecida como “cadeira do
dragão”. Aquelas lesões são reconhecidas como “marca elétrica de
Jellineck”, na maioria das vezes macroscopicamente insignificante e
podendo ter como características a forma do condutor causador da lesão,
tonalidade branco-amarelada, forma circular, elítica ou estrelada,
consistência endurecida, bordas altas, leito deprimido, fixa, indolor,
asséptica e de fácil cicatrização. Tudo faz crer que esta lesão é
acompanhada de um processo de desidratação, podendo se apresentar nas
seguintes configurações: estado poroso (inúmeros alvéolos irregulares,
juntos uns aos outros, com uma imagem de favo de mel), estado anfractuoso
(tem um aspecto parecido com o anterior, mas com alvéolos maiores e
tabiques rotos) e estado cavitário (em forma de cratera com apreciável
quantidade de tecido carbonizado). As lesões eletroespecíficas (marca elétrica
de Jellinek) não são muito diferentes das lesões produzidas em “sessões
de choque elétrico”, a não ser o fato destas últimas não
apresentarem os depósitos metálicos face os cuidados de não se deixar
vestígios. Todas essas lesões são de difíceis diagnóstico quanto à
idade, podendo-se dizer apenas se são recentes ou antigas, mesmo através
de estudo histopatológico; n)
Lesões
produzidas em ambientes de baixíssima temperatura conhecidos como
“geladeira”, podendo ocorrer inclusive gangrena das extremidades; o)
Lesões
decorrentes de avitaminoses e desnutrição em face de omissão de
alimentos e por falta de cuidados adequados e de higiene corporal; p)
Lesões
produzidas por insetos e roedores. A.6.2
– Processos patológicos naturais.
Embora aparentemente de interesse mais anatomopatológico, esses achados
podem oferecer respostas para o diagnóstico de causa mortis e de algumas
circunstâncias, como também ajudar a compreender algumas manifestações
quando do exame interno do cadáver, como: desnutrição, edemas, escaras
de decúbito, conjuntivas ictéricas, processos infecciosos agudos ou crônicos,
infecções dos órgãos genitais, entre tantos. B.
Exame interno do cadáver. Alguns chamam essa fase da perícia como
a necropsia propriamente dita, mas já dissemos que há ocasiões ou tipos
de morte onde o exame externo tem uma contribuição muito valiosa. Aqui
também o exame deve ser metódico, sistemático, sem pressa, com o
registro de todos os achados e, como se opera em cavidade, deve-se
trabalhar à luz do dia, sem as inconveniências da luz artificial. Todos
os segmentos e cavidades devem ser explorados: cabeça, pescoço, tórax e
abdome, coluna e extremidades, com destaque em alguns casos para os
genitais. As
lesões internas mais comuns em casos de morte por tortura são: B.1
– lesões cranianas: a) hematomas sub ou extradural não são raros em
sevícias com traumatismos de cabeça; b) hemorragias meningeas; c)
meningite; lesões encefálicas; micro-hemorragia ventricular (valorizar a
presença de pontilhado hemorrágico no assoalho dos 3º e 4º ventrículos
– sinal de Piacentino, que associado à marca elétrica de Jellineck,
leva a um diagnóstico de convicção der uma morte por eletroplessão). B.2
– Lesões cervicais: a) infiltração hemorrágica da tela subcutânea e
da musculatura; b) lesões internas e externas dos vasos do pescoço; c)
fraturas do osso hióide, da traquéia e das cartilagens tireóide e cricóide;
d) lesões crônicas da laringe e da traquéia por tentativas de
esganadura e estrangulamento. B.3
– lesões tóraco-abdominais: a) hemo e pneumotórax traumático; b)
manifestações de afogamento como presença de líquido na árvore
respiratória, nos pulmões, no estômago e primeira porção do duodeno,
além dos sinais clássicos como enfisema aquoso subpleural e as manchas
de Paltauf, em face de imersão do indivíduo algemado em tanques de água
em processo chamado “banho chinês” ou introdução de tubos de
borracha na boca com jato de água de pressão, devendo-se valorizar o
conteúdo do estômago e dos intestinos; c) manifestações de asfixia,
edema dos pulmões, cavidades cardíacas distendidas e cheias de sangue,
presença de lesões eletroespecíficas e ausência de outras lesões,
falam em favor de morte por eletricidade industrial, mesmo que se diga não
existir um quadro anatomopatológico típico de morte por eletricidade; d)
roturas do fígado, do baço, do pâncreas, dos rins, estômago e dos
intestinos; e) desgarramento dos ligamentos suspensores do fígado; f)
hemo e pneumoperitônio; g) rotura do mesentério. B.4
– lesões raquimedulares: a) fraturas e luxações de vértebras; b) lesões
medulares. C.
Respostas aos quesitos: No que diz respeito ao quesito “Se a morte
foi produzida por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou por
outro meio insidioso ou cruel” deve, nos casos positivos, ser respondido
de forma especificada, ficando na descrição do laudo bem claras as razões
de tal confirmação. Nos
casos de tortura a base da informação é um dos tipos de lesões
descritas acima, seja nos seus resultados, seja na sua forma de
produzi-las. O meio insidioso seria aquele que
se manifesta pela forma de dissimulação capaz de encobrir a prática
criminosa e impedir a defesa da vítima. O uso do veneno é um exemplo
desta ação dissimulada. E meio cruel aquele em que o autor procura muito
mais provocar o sofrimento físico ou psíquico da vítima do que
propriamente sua morte. Existe na crueldade um ritual, um cronograma
articulado de procedimentos cujo fim é o sofrimento da vítima. A norma
penal aponta como manifestação da crueldade o emprego deliberado do
fogo, do explosivo, da asfixia e da tortura. Neste particular devem-se
considerar muito mais as regiões atingidas, as características das lesões
e o meio ou instrumento causador das lesões. A gravidade das lesões
e sua multiplicidade, por si sós, não caracterizam o meio cruel.
O
exame externo do cadáver tem um significado muito especial no diagnóstico
pela evidência das lesões sofridas nestas formas de morte violenta.
Acrescente-se ainda a contribuição bioquímica e histológica (docimásias
hepáticas e supra-renais). Nos
casos em que não estejam evidentes
tais manifestações (tortura e meio insidioso ou cruel), temos
recomendado o cuidado de responder àquele quesito usando as expressões
“prejudicado” ou “sem
elementos de convicção” ou “sem
meios para afirmar ou negar”, deixando-se para outros exames
complementares, inclusive o laudo da perícia criminalística, uma definição
mais exata. Ainda mais quando a morte se deu de forma suspeita ou
duvidosa. Enfim, só responder afirmativamente quando se tiver a plena
certeza de que há lesões tipicamente produzidas por aqueles meios. Por
outro lado, nunca responder “não”. Mesmo numa morte natural, melhor
chamada de “morte por precedentes patológicos”, pode existir
tortura ou meio insidioso ou cruel. Basta deixar que o indivíduo
agonize sem assistência. Conclusões O
Protocolo de Istambul sobre Torturas admite que o examinador
possa usar determinados termos em suas conclusões como: 1.
Inconsistente:
a lesão não poderia ter sido causada pelo trauma descrito; 2.
Consistente: a
lesão poderia ter sido causada pelo trauma descrito, mas não é específica
dele e existem muitas outras causas possíveis; 3.
Altamente
consistente: a lesão poderia ter sido causada pelo trauma descrito e são
poucas as outras causas possíveis; 4.
Típica de:
esta lesão é geralmente encontrada em casos desse tipo de trauma, mas
existem outras causas possíveis; 5.
Diagnóstico
de: esta lesão não poderia ter sido causada em nenhuma outra circunstância,
a não ser na descrita. LEI
Nº 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997 Define
os crimes de tortura e dá outras providências. O
PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço
saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Artigo
1º -
Constitui crime de tortura: I
- constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça,
causando-lhe sofrimento físico ou mental; a) com o fim de obter informação,
declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para
provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de
discriminação racial ou religiosa. II
- submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de
violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como
forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena:
reclusão, de dois a oito anos. §1º-
Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de
segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de
ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal. §2º
- Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de
evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro
anos. §3º
-Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de
reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a
dezesseis anos. §4º
- Aumenta-se a pena de um sexto até um terço: I
- se o crime é cometido por agente público; II - se o crime é cometido
contra criança, gestante, deficiente e adolescente; III - se o crime é
cometido mediante seqüestro. §5º
- A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público
e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. §6º
- O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou
anistia. §7º
- O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do §2º,
iniciará o cumprimento da pena em regime fechado. Artigo
2º - O disposto nesta Lei
aplica-se ainda quando o crime não tenha sido cometido em território
nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local
sob jurisdição brasileira. Artigo
3º - Esta Lei entra em
vigor na data de sua publicação. Artigo
4º - Revoga-se o art. 233
da Lei nº 8.069, de 13 de Julho de 1990 - Estatuto da Criança e do
Adolescente. Brasília,
7 de Abril de 1997; 176º da Independência e 109º da República. Fernando
Henrique Cardoso Nelson
A. Jobim
NOTA: (*) Resumen de conferencia hecha durante el “Congreso Internacional de Genética, ADN Y Clonación - Aspectos éticos, científicos y jurídicos”, en Lima, patrocinado por la Universidad Inca Garcilaso de la Vega y Sociedad Peruana de Derecho Médico. [1]
Santos, JC – As raízes do crime, Rio de Janeiro: Forense, 1984. [2]
França, GV – Pareceres II, Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S/A, 1999. [3]
SNICK, Valdir. Tortura
– histórico, evolução, crime, tipos e espécies, vítima especial e
seqüestro. São Paulo: LEUD, 1998. [4]
França, GV - Comentários ao Código de Ética Médica, 4ª edição, Rio de
Janeiro: Editora Guanabara Koogan S/A, 2002. [5]
D. Forrest, Exame dos efeitos físicos tardios da tortura, Jornal de Medicina Clínica
Legal (6 1999:4-13). [6]
D. Lunde e J. Ortmann, Tortura sexual e tratamento de suas
conseqüências, Tortura e suas
conseqüências, abordagens atuais de tratamento, M. Basogly, ed.
(Cambridge, Cambridge University Press, 1992:310-331). [7]
França, GV, Medicina Legal, 6ª edição, Rio de Janeiro: Editora Guanabara
Koogan S/A, 2001. [8]
G. Sklyv, “Seqüelas físicas da tortura”, Tortura e suas
conseqüências, abordagens atuais de tratamento, M. Basoglu ed.
(Cambridge, Cambridge University Press, 1992:38-55). [9]
V. Lök, M. Tunca, K. Kumanlioglu et al, Cintilografia
óssea como pista para tortura anterior, Lancet (337(8745)
1991:846-847). Ver também M. Tunda e V. Lök, Cintilografia
óssea no exame de sobreviventes de tortura, Lancet (352(9143)
1998:1859). [10]
J.D. Kinzie e outros, Prevalência
da desordem do estresse pós-traumático e seus significados clínicos
entre refugiados do sudeste asiático, American
Journal of Psychiatry (147(7) 1990:913-917). [11]
L. Danielsen, Mudanças
na pele após tortura, Tortura (Supl. 1, 1992:27-28). [12]
O. V. Rasmussen, Aspectos
Médicos da Tortura, Boletim Médico Dinamarquês (1990, 37
Suplemento 1:1-88).
(**) Médico, Profesor, conferencista internacional en Derecho Médico, Titular de Medicina Legal Universidad Federal da Paraíba - Brasil; Profesor Titular de Medicina Legal Escuela Superior de la Magistratura, Paraíba - Brasil; Vice-Presidente de la Sociedad Brasilera de Medicina Legal; Socio Fundador y Miembro de la Junta Directiva de la Sociedad Iberoamericana de Derecho Médico. Profesor Visitante Universidad Estadual de Montes Claros - Minas Gerais - Brasil. Autor de diversos libros y publicaciones en materia de Derecho Médico. Presidente Honorario de la Sociedad Brasilera de Derecho Médico(SODIME) Dirección del autor: Calle Santos Coelho Neto, 200 – Apt. 1102 58038-450 – João Pessoa – Paraíba E-mail: gvfranca@openline.com.br http://www.direitomedico.com.br/genival http://www.openline.com.br/~gvfranca
|
|||||